sexta-feira, 19 de julho de 2013

pedras da calçada da vida adentro [III]

Hoje tenho medo de ter sido

Fernando Pessoa, in O Marinheiro



I. dúvidas para existências e tantos aconteceres

arrisco o olhar
tento o  amor
e atiro-me ao movimento
como o cordão à volta
do pescoço
a remexer sangue e
espinhos
com que se aprende a
vida
e se crê na palavra
indomada.

já tentei tantas formas de
envolver o teu corpo na língua
de aromas
à velocidade da noite
que logo me sei iminente
para,
no instante seguinte,
tudo esquecer

de novo.

fotografia de eurico portugal


 II. janelas de além-corpo

não tenho muito mais tempo para saber
morrer,
os capítulos maiores da minha vida
esqueci-os já

é o momento de fechar a
cortina do corpo
o minúsculo poro escuro
de profundidade indefinida,
quase invisível
como os dias cegos
a escorrer pelas retinas
numa hipnose de janelas e nuvens.

há ainda quem acredite em fugas
quando os dentes apodrecem e
as bocas permanecem indiferentemente
sujas?

fotografia de eurico portugal



 

terça-feira, 9 de julho de 2013

senhas e códigos para alguns recomeços


fotografia de eurico portugal


I.
procurei-te na dislexia do nome
com que se escrevem alguns fins de mundo
e foi aí,
na encruzilhada de um tempo queimado,
que me deixei vencer pela poesia,
sempre mansa, gato de pelo macio
a ronronar vontades para
no instante seguinte
esgaçar a voz com uma unha
feminina encarnada
impecavelmente tratada
como toda a saliva que queima
até ao caroço.


II.
no dia em que me esqueci de ti
desatei a mentir
a inventar primaveras e a
despedir falsos silêncios
como o pão, o vinho e tudo o que
ilude o corpo

no dia em que me esqueci de ti
jurei cicatrizar o mundo,
mas há imagens que regressam
sempre
a pingar pelos dedos
em cada coágulo de céu.


III.
há uma morte escondida
no outono da pele
trespassada pela terra,
rasgada pela boca:

toda a mentira menstrua
e as palavras
apodrecem antes do
parto.


IV.
fim:

eis a mais fina linha de luz
no hálito do
esquecimento:

a eternidade é sempre demasiado
breve
quando a projetamos entre
a certeza e o medo.

fotografia de eurico portugal



.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

diário do verão para certezas avulsas e breves singularidades


pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer.

Al Berto, O Medo


fotografia de eurico portugal



desço
por dentro e a prumo a cada
incêndio do sangue,
do próprio deus,
a embebedar o vento no rosto
enquanto fugimos daquele
verão:

o tempo das certezas sem interrogação
a arder na claridade como
ondas invisíveis,
o querer altivo de figurações
e poemas completos:

foi o estio dos homens
grito e silêncio na generosidade dos corpos
por não poderes fugir do que não alcanças,
verão sem rosto
a dissolver frutos vermelhos dentro de ti
lentamente e sem embaraço
seguro de que as asas do voo cicatrizariam
feridas e tempo:

eu era o mistério a habitar-te as mãos,
eu, da cor dos teus olhos,
da terra húmida e do frescor que não se esquece,
eu tinha fé no tempo nas imagens e nos símbolos;
tu, apenas desejavas rosas
mas temias o vento que nada faz mexer:

o verão passou
e a boca, sentada no peito moribundo,
mordeu o silêncio branco do ar
atirado ao chão,
nenhum de nós o ousou respirar
e tu morreste
e eu morri:

regressámos aonde nunca estivemos
acreditando ter vencido o tempo das palavras
sobretudo o tempo sem palavras:

hoje,
é julho,
o mercúrio aquece a pele
e a vida inteira é mais longa do que
as sombras de abrigo:

ao regressarmos à gaveta do tempo
teremos esquecido a rota dos pássaros
e a leve alegria dos lábios
lentamente
como quem procura o outro no espelho
mas somente se encontra a si:

hoje,
é julho
e continuamos à espera da imagem do verão
e do reflexo de cada um dos seus incêndios.

sábado, 29 de junho de 2013

estreitas luminâncias para solidão branda e alfazema


O amor vem depois. Era isto o depois.
[...] um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.

José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis


fotografia de eurico portugal



Deixámos estações em cada um das mãos e encostamo-nos à sombra do mar: nem um rugido, respiração ou estertor. É por dentro, e de cabeça para baixo, que adivinhamos sentidos para os mapas de outrora e para a geografia da pele, onde deitados ou de qualquer forma sabíamos o cheiro e a textura dos fins do dia - lisos, ofegantes, agudos, até adormecerem nos corpos.
A valsa hoje é lenta e as melodias já não soam como dantes na estreiteza da dança, até porque dos frutos vermelhos já só lembramos o movimento dos lábios, para cima e para baixo, em círculos perfeitos que morrem docemente no contorno acidulado do sangue.
O tempo passa pela luz até à pausa da noite e a risca negra para onde tudo se volta lateja, como dantes, do lado pardo do coração; conheço as batidas de cor e o tempo e os lugares entre mim e o tiquetaque do que já não sou. Mas, que fazer senão riscar um fósforo, acender o verso e regressar, por fim, à planície vazia da página - de pé, as pernas firmes... e o olhar quase sempre mal iluminado.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Pedras soltas na calçada na vida adentro [II]


I - Estrabismo

São duas as linhas de olhar nos carris de um único horizonte. Hoje, obliquam no ângulo morto de um espelho a extinguir imagens como se nada tivesse acontecido no algoritmo sagrado do tempo.
Um e outro homem diante da mesma história, dos mesmos caminhos do corpo, do mesmo mapa de pele: sentado, exulta a locomotiva a rugir-lhe a juventude das mãos; de pé, sonha que as rugas se esqueçam de si.
Cansados das suas mentiras, encostam-se a cada um dos seus silêncios e aguardam que, linha a linha, as palavras se apaguem de vez no casulo bafiento da viagem - e a morte tornou-se a mesma coisa embora com outro nome.


fotografia de eurico portugal



II - Polaroid

Levantou-se, já trémula, e dirigiu-se ao passe-partout na cómoda do quarto. Uma fotografia antiga amaciada pelo tempo aguarda que a temperatura dos dedos incendeie a imagem até à carne. Era um rosto limpo, o silêncio de todas as coisas sem idade, a luz-luz de uma criança parada diante do seu olhar, enquanto do lado de fora do papel aquele instante era todos os outros que o consumiram na avidez do que não torna nunca.
Nem uma lágrima, nem um suspiro ou uma inflexão de voz: é este o castigo das fotografias: saber o que o tempo nos mostra a seguir.


fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 14 de junho de 2013

galeria VIII

I. niilismo

nada
ninguém

e
a palavra a verter sentidos

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II. sim.tu.[nia] 
* para a dani carrara

sinto.

sim. tu.

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III. melancolia
* para a andy

melancolia:

fogo roubado à espera
de voltar a arder.

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IV. ode aos lábios vermelhos

lábios e sangue no pescoço
em viagem vertical
para pequenas mortes de amar
mais do que posso
menos do que preciso

fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 7 de junho de 2013

galeria VII


I. biblioteca

de súbito o frémito:
é a geometria da pedra
as toneladas de fogo até aos olhos
e a majestade do sangue
a percorrer metros de linhas
e tantos quilómetros de
viagens escritas,
ainda mais por escrever,
na contingência arbitrária
da palavra
da respiração aflita
e da grandeza inevitável:

tímida e certa,
restrita e absoluta
como tudo o que parte do corpo
em direção às coisas
que não têm preço.


fotografia de eurico portugal




II. pontuação

fosses tu poros e respiração
e eu apenas o instante,
sôfrego e urgente,

a pontuar-te todo o corpo.


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