segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Aroma de cereja a escalar a pele


Chegaste vestida de luz, gomo de cereja na mediania das cores, mas eu era já tarde de mais, apenas cinza a pentear silêncios.
À distância do tempo, fomos derrotados por estações defeituosas, um poema mal escrito e todos os frutos apodrecidos antes da boca, por isso resta-nos esperar a chuva, chapéu colorido aberto e cabelos soltos para a única certeza: a de hoje sermos o derradeiro arrepio a escalar-nos a pele.



fotografia de jorge pimenta



domingo, 9 de novembro de 2014

À velocidade da solidão


Por fim, relembras... recordas o tempo em que escrevias vozes em cada verso, mulheres mordendo a noite, copos acesos de rimas à espera que os lençóis estendessem as mãos para as magnólias de um tempo que adivinhavas eterno. Sim, escrevias, e no bailado de tinta, emaranhavas serpentes que se lançavam para dentro do corpo – e o tempo foi água a correr, invisível, na clepsidra das veias.
Hoje já nada escreves e a palavra é apenas o abandono com que, de bengala na mão, recordas o fim da estrada. Por isso, corres... à velocidade da solidão.




Fotografia de Jorge Pimenta


sexta-feira, 13 de junho de 2014

chuva ácida


queria fechar-se inteiro num poema
[...] quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
e a sombra dos elementos por cima

herberto helder, a morte sem mestre



fotografia de jorge pimenta


ofereço-te a insónia
mãos que transpiram e
um par de olhos pousados em nuvens
rasgadas

ofereço-te ilhas brancas e arquipélagos
navios inteiros, tripulações e
tantos impossíveis

sobretudo
ofereço-te este braço,
esguio e magro,
no punho de um guarda-chuva
derretendo a tela entre gotas ácidas
que incham, fremem e queimam o dia
em que regressámos um ao outro,
corpo gasto de tanto assobiar
ao medo e à fome de
todas as coisas.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Escondido na luz pálida do fim do tempo


há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.

Mário Quintana


fotografia de jorge pimenta


Éramos demasiado novos mas nem isso nos impediu de colher ventos por debaixo do ventre. Sempre fomos metade carícia e um tanto tempestade, passos desalinhados à saída do tempo, essa galeria onde o perfume cresce do outro lado da luz a apedrejar o corpo e a volúpia. E, todavia, não deixámos de caminhar teatralmente para dentro das horas, por cima dos objetos, para além dos nomes.
O tempo passou ao lado das primaveras que arderam em versos, as linhas assomaram ao rosto, mas nem assim to disse, até porque sabias que eras tu quem levava toda a minha história agarrada à pele, cosida pelo lado de dentro, indiferente ao pus, ao sangue e ao esquecimento. Nada mais precisava de dizer, porque isso bastava para que tudo em mim estilhaçasse à velocidade de um jato desgovernado a abrir rasto nas nuvens, esse lugar único onde nem os deuses conseguem chegar e que os homens ousaram chamar de "amor".
Hoje, somos olhos vazios voltados para uma nova sentença: escassear sossegos e cicatrizar silêncios na grande armadilha para onde atraímos tudo o que não fomos capazes de vencer.


quinta-feira, 29 de maio de 2014

Telhados dele, telhados dela


Éramos perpétuos um no outro.

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos


fotografia de jorge pimenta


São eles, os telhados, a lavar-lhes retinas ao anoitecer. Na obscuridade, mordem-lhes os dedos com figos e pão, enquanto cospem sílabas impronunciáveis com que alimentam cada escalada e precipício. Detêm-se nos corpos que, mão sobre a mão, devoram o tempo da fotografia, roída, gasta, a acariciar gavetas, por entre alfazema e roupa interior mal dobrada. É a idade que passa, que lhes verga os passos sobre as vértebras de todos os segredos, guardando uma derradeira certeza: mais tarde será tarde de mais e já nem o nome lhes caberá no beijo.


 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Ode às mil e uma noites


fotografia de jorge pimenta


És tu a ode onde aprendo a superfície do mundo, tu, corpo a serpentear pelas árvores enquanto metáforas te escalam a pele em absoluta nudez. Num gesto invisível, libertas as mãos, mãos estreitas, profundas, mais largas do que o amor, que é ter medo de morrer por não saber morrer. Arriscas dois passos para diante, agitas a anca antes de um mover de olhos para a luz onde nem a cal do meu rosto te trava o ímpeto, breve e inesquecível, como esse soalho feito de papel onde insistes em arder a cada movimento desprendido.
Saio de mim para te saber ver e é na leveza da dança que espalhas alfabetos indecifráveis, pétalas de certezas e travessuras onde, com a ponta dos dedos, rabiscas linhas no vidro embaciado do fim do magma - tão singelas, quase pueris, sem esconderem um ligeiro rubor de face que emudece a cada acorde musical no sacrifício branco do silêncio.
E ali ficámos, tu, eu e as marcas de um deserto suspenso na voz: é verdade, ninguém vive pela memória, mas é lá que o mundo se faz papel e tinta, poema atrevido e hemisfério noturno do tempo a desvendar todos os caminhos - mesmo os do impossível.


 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

os livros e os olhos: cântico para clamores e ventres raspados


fotografia de jorge pimenta


é lenta a revoada de páginas,
dois gomos de tangerina
e um leve fio a escorrer
pelos dedos,
aço, dizes tu;
nuvens, sei-o eu;
mas entre um e outro
toda a espessura das coisas
já gasta em saliva
com que percorres mundos de papel
que nos cabem,
sem míngua ou excesso,
em cada milímetro do corpo

são páginas
na gravidez do sal,
são palavras e espantos
de frio,
manhãs cor de anis,
numa desordem que toca
todas as coisas
por cima do tempo
por debaixo do vento,
nesse lugar secreto onde
tudo se ganha
e quase tudo se perde

a pouco e pouco,
chegado o derradeiro capítulo da viagem,
boca desatada sobre a exclamação máxima
do mundo:
são deuses de corpo nu
entoando a marcha interminável dos corpos
nessa felicidade de tinta
com que escrevemos os dias lentos
que julgávamos presos à engrenagem secreta
do fim da morte

mas agora é o instante,
a derradeira frase, e
já de olhos abertos e mãos sobre a paisagem,
o manto branco é tudo o que dissipas
e nada mais alcanças
senão a chuva frenética das sombras
aninhada sobre espelhos
num ocaso de flores vazias
infinitamente encharcadas,
sarcasticamente queimadas

e a história repete-se...


sexta-feira, 2 de maio de 2014

urban-idades


I. são assim as cidades

são assim as cidades
telhados do tamanho da idade
a erguer-se como pombos
com sílabas nas asas e
nomes que não envelhecem no peito.
são sons, ruído, vertigem e velocidade
mas dentro do teu olhar sonâmbulo
apenas a embriaguez de um segundo
a queimar-nos as mãos,
esse instante que passa mais lentamente
do que todo o tempo.


fotografia de jorge pimenta



II. Escalada e abismo

sei as escadas do corpo
em que a luz passa de boca em boca,
sei de escadas plenas
a ascender e a mergulhar
nos lugares recônditos do silêncio:
um nome, um rosto, um talvez recolhimento
na ressuscitação do pó.

sei de escadas...
lá onde tudo é outra coisa.


fotografia de jorge pimenta



III. requiem para uma cidade adormecida

já não me engana
a cidade
e o vício torcido na pele,
toda ela hábitos de palavras e
esconderijos de silêncio

às vezes atiro-lhe as mãos,
outras a minha loucura
e ela,

sempre insatisfeita,
abre a boca e engole-me na voragem
de serpente lasciva
a sibilar desejos
e algum do meu frio pela voz

no interior da idade,
a pedra oculta-se camaleónica
e, quando paro para serenar,
eis que toda ela se ilumina
mas ninguém respira já no interior das casas

já não me engana a cidade e
das estrelas nada mais espero do que palavras
de sentido lascado.


fotografia de jorge pimenta



sexta-feira, 25 de abril de 2014

pedras da calçada da vida adentro [XI]


I. Mil e uma faces

Os rostos escondidos, sabemos da morte do tempo com que sugámos a veia e os corpos, na avenida dos dias, são somente fragmentos a atropelar silêncios.
Neste ciclo vicioso do sangue, algum dia regressaremos?


fotografia de jorge pimenta



II. Peregrinação: a linha ininterrupta

Uma praça vazia, a geometria dos homens a oscular deuses, um livro aberto sobre a chuva e toda a existência de pedra estendida até aos ossos da voz: entre mim e o meu silêncio, estou só, nesse lugar sagrado onde até as aves deixaram de morrer.


fotografia de jorge pimenta



III. Epitáfio

Na ordem do mundo, somos luz sobre todos os lugares onde o corpo aprende a morrer.


fotografia de jorge pimenta



IV. Mapa de pele

Quanto nos cabe no beijo quando o lábio nos atira para lá da ferida aberta? Dentro de nós, perco-me num balanço algures entre a noite e a alvorada.


fotografia de jorge pimenta


sábado, 12 de abril de 2014

ode ao [im]possível e a outras transcendências


É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã,
subitamente, o mundo nos pareça perdoável.

Manuel de Freitas, Lawrence's, quarto tradição



fotografia de jorge pimenta

onde o coração da terra
e as moradas sem inverno
nem rimas cansadas?
onde a raiz sem medo e
os silêncios talhados pela voz
feminina?
onde a casa e o
perfume áspero da madeira?
onde tu
ventre ileso na luz
a fervilhar pelos corpos
habitados por dentro?
onde os lugares que
no amor
nascem e morrem sem ruído?

somos o tempo por habitar
e uma leve vontade de enlouquecer
na estrada irreprimível do poema:

só o verso celebra o que
os homens extinguem.


sábado, 5 de abril de 2014

dúvidas para existência feminina e alguns nadas



sou eu
que habita a capital
do teu poema
num prédio
mal iluminado.

Ana Salomé, Ode do casaco vermelho


fotografia de jorge pimenta


de que gesto te serves para
lhe chegares ao corpo
impresso de ambos os lados?
quantas mentiras chamas às mãos
no palco da feminina melancolia
a escalar desejos
e impossíveis?
onde o viés da coxa
espetada no centro,
tensa, peregrina, mulher
por entre gemidos e espanto?

é verdade,
as palavras dispersam primaveras
e os silêncios também morrem
de amores
como os homens
reclamando sucos
gritando vertigens
empurrando a carne para despistes
e todo o corpo de encontro ao muro
que disseste sábio e transparente
como línguas a ocultar promessas

por debaixo da pele
cingida no elástico da cinta
onde navios adivinham
o porto em que podem morrer
estremeço:

- quem serás tu,
afinal?

o cabelo solta-se
descobrindo uma paisagem
inabitada a oeste da anca
como se tudo o que se espera
fosse demasiado:

- apenas certeza e quase mulher
a dar de mim o que já não posso.

e nesse dia descobrimos ambos:
todos os livros guardados na mesinha de cabeceira
são anteriores ao tempo
mas nunca partem para longe.


quinta-feira, 20 de março de 2014

pedras da calçada da vida adentro [X]


nada do que morde me leva o lábio...
Jorge Pimenta



I. O medo das palavras que não sei dizer

É assim o silêncio, cúmplice do tempo  a desflorar pétalas e a calçar sombras no abandono da idade.


fotografia de jorge pimenta



II. À mesa do tempo

Deixa a vaga de silêncios adornar a pele, assomando sulcos por cada letra trémula no vocabulário das mil e uma mentiras. Schiu... escuta o silêncio porque tudo em que crês é surdo, seco, sórdido como o oceano e aquelas palavras que a idade retém na boca para não coagular lábios. Psssst, dá-me a tua mão, enquanto esboçamos, juntos, percursos para a ilusão, devagarinho, sem ruído, não vá a nossa ousadia acordar o tempo.


fotografia de jorge pimenta



III. A arquitetura do ser

Na simetria dos passos, rostos vendados a dissipar labirintos e presságios enquanto recolhem as linhas que perderam na travessia da noite.


fotografia de jorge pimenta



IV. A trilogia da espera

Quanto de mim fica no tanto que em ti parte?...


fotografia de jorge pimenta




sexta-feira, 14 de março de 2014

miados para pele branda e seus fulgores


Em abril de 2013, foi assim, num texto que dediquei à Tânia Regina Contreiras:

Hoje acordei com gatos e os seus gemidos a amparar a pele e seus fulgores. O texto nasceu numa lógica experimental e tem que ver, numa primeira linha, com o delírio da imaginação e com o poder do sonho nos projetos e nos fracassos. Num segundo momento, e de forma mais subtil, o gato, na pele de uma mulher de um ontem que talvez nunca tenha sido.

Hoje, pela primeira vez no Orvalho, mas com a dedicatória com que nasceu:
a ti, Taninha!


fotografia de jorge pimenta


miados para pele branda e seus fulgores

trago gatos nas mãos
a trepar candeeiros do cimo da rua
onde baloiço o corpo
como naves seguras nas vagas do fim do dia.
percorrem-me
de um hemisfério ao outro,
miando papoilas com que seduzem o sol (lá fora)
e o sal (bem ali, no lugar do suspiro que mata
devagarinho).
umas vezes paro, outras ignoro-os,
mas em todas se fazem estátuas antigas
impacientando palavras e adivinhando
a escuridão.
no duelo imóvel esgrimindo olhares,
sinto as fábulas que li e que me sabem
cada vez mais seco, quase objeto
a secar lábios e beijos.
corro para a porta e,
sem os ver,
sei-lhes as sombras que me seguem
as sombras que um dia morreram a boca
e me ataram definitivamente ao silêncio branco a que
chamamos casa,
essa casa onde tu és apenas silhueta
de fulgor brando com que as manhãs
me acendem todas as candeias.

olho pela janela e estou só,
menos só, talvez, do que ontem
e em todos os dias que te ousei escrever.


sexta-feira, 7 de março de 2014

um rasto de chuva para invenção de nomes e orvalho


I.

Hoje, escondo a chuva que me existe velozmente, tapo o rosto num véu de rosas e deixo que o vento me indague, olho nu e ausência de mãos.
Nada sei já senão a vaga certeza da ciência dos naufrágios, leve sombra inocente a decidir florescências de quem leva ao coração a fúria de passos que espalham e não encontram.
Ainda assim, tanto há que ainda me respira...


fotografia de jorge pimenta


II.

Silêncio vertical sobre duas pingas de solidão enquanto o teu nome permanece gravado na tela de um guarda-chuva.


fotografia de jorge pimenta


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

pedras da calçada da vida adentro [IX]



I. Palavras e assim

Há palavras assim, a beijar-se na boca apagando os precipícios agarrados ao corpo.


fotografia de jorge pimenta


II. Um tampo de primavera na mesa

Um jato de tinta a afiar a folha de papel, o aroma a primavera, amoras e palavras silvestres em sedução mútua, um café escuro e alguns gomos de espantos a escorrer sumo pelos dedos. Tudo de ti aqui, em cima da mesa, ao lado de uma aragem simples, sem nome, empurrada pela lua com as mãos à espera de um gesto simples, talvez um verso, uma rima, ou quem sabe se aquela blusa vermelha com que escondias vertigens. Tudo isto aqui, em cima da mesa, num gesto sem aviso a iluminar o sol. Tudo isto aqui, o medo a ciciar aquilo que morreu.


fotografia de jorge pimenta


III. O que resta além da água?

Foi ontem, o dia em que afastaste os lábios em direção ao mar e toda tu foste lição de água a alagar a matéria envenenada dos corpos. Hoje ainda é inverno e na caligrafia do tempo evaporam-se recordações em braçadas de luz e instinto; mas, algum de nós o sente, ainda?


fotografia de jorge pimenta


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ode à respiração sem pausas


Há olhos que só olham o sonho; e, quando
o sonho se dissipa, ficam cegos.

Nuno Júdice, in Viagem


fotografia de jorge pimenta


quando me chegas,
dedos magros entornados na luz,
cai sobre nós
um arco de açucenas e espantos que,
de vento em vento,
tomba pétalas
na gramática dos corpos

demoras no céu da boca cáries
e abismos de boca
a atar sorrisos à estação fria,
porque entre os gomos e a árvore
crescem lâmpadas da palavra inteira,
rotas de lua rasa a enfeitiçar o sul
e a eterna porta entreaberta para
o desassossego
de viver milhões de mundos
que aprendemos a escrever
no silêncio de ervas queimadas e ramagens
sem folhas

é esta a paisagem onde vicejam
corações:
repara como nos cabe no peito
mesmo que em dias cinzentos
a abandonar flores.



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

variações em torno de amores e [im]possíveis


se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o meu corpo da espuma dos planetas


Vasco Gato, Se alguém disser




fotografia de jorge pimenta



I. A um palmo do peito
Enrosco-me no silêncio da tua chegada; quando me vês, entregas-me os lábios ou finges morrer.


II. Anagrama
Rosto inclinado, uma trança pendida e todo eu estremeço no impulso do teu nome: procurar-te por entre letras dispersas é acelerar a certeza deste corpo que respira.


III. Geografia
Tenho mapas, linhas de mão e astrolábios, mas continuo a despenhar-me nas latitudes da tua voz.


IV. A sombra das palavras
Fomos grito, fome e levitação, mas agora, entre mim e o teu silêncio, somente a certeza de que um dia será futuro.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

pedras da calçada da vida adentro [VIII]


I. o salto

e depois, o salto, o corpo suspenso e a trança queimada; e depois, a escrita nas cinzas com a ponta dos dedos.

fotografia de jorge pimenta


II. refração

alimento-me de estrelas, de nuvens e do balanço inclinado da tua voz para saber presentes; tudo o mais é perder.

fotografia de jorge pimenta


III. monólogo de mãos para certezas improváveis

haverá mãos a desatar nuvens nos cabelos e um corpo dentro do corpo; haverá mãos, sim, num dia mais cedo do que o tempo.

fotografia de jorge pimenta


IV. pena capital


tocas os dias que faltam com lágrimas futuras: a noite pode até doer mas o tempo há muito deixou de existir.

fotografia de jorge pimenta


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

ode ao livro e a cada um dos seus silêncios


Sophia, com as suas palavras de terra e de mar, alimenta vidas através do silêncio da escrita.

[dedicatória encontrada no livro Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, que repousa numa estante da minha biblioteca]


Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta


é ele, o livro
sonho a vestir viagens e
aventuras de areia com mãos frias
despido de mapas ou tesouros,
apenas caminho e pés
a queimar plantas e bolhas
em cada mil vagas e marinheiros

é ele, o livro,
cheiro, odor, castigo,
indiferente à loucura e à passagem dos anos
bicicleta com luz a trepar os olhos
e uns pingos de sangue no joelho
daquela encosta onde soprei estrelas
e nuvens
no balanço inclinado da tua voz

é ele, o livro,
estação do ano preferida
a rugir prados e açucenas
com que queimavas a pele
e rufavas delírios
nesse cortejo de ânsias e
bem-quereres

é ele, o livro,
o espaço que o tempo habitou
num mundo que começa e acaba
nas crinas das linhas, nos contornos das letras,
livro-esboço de infância sem relógio
em cada som murmurado
em cada palavra repetida
nalguns sentidos roubados
bem ali ao lado da cadeia infinita de silêncios
e de algumas mortes escorridas
na tinta.


Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta


Boekhandel Selexyz Dominicanen

Há lugares assim. Depois do fascínio da Livraria Lello, no Porto, um daqueles lugares que parecem suspensos no mundo e, para o meu amigo Roberto Lima, a mais bela livraria do mundo, atrevi-me a um salto à irresistível Boekhandel Selexyz Dominicanen, em Maastricht - Holanda. Considerada como a mais bonita do mundo, esta livraria é muito mais do que um lugar onde se compra livros; é um espaço de culto, montado, em 2007, numa abadia dominicana do século XII que até há bem pouco tempo se encontrava abandonada, tendo, até então, servido como depósito de bicicletas, o mais comum meio de transporte naquelas latitudes. O contraste do ambiente austero e da arquitetura gótica (onde até os tetos preservam os frescos) com a sofisticação da decoração moderna e a intemporalidade do livro a vestir paredes e estantes, tornam-na num espaço de reverência que convida ao intimismo e à introspeção. Desses que o mundo nos oferece e que, como a Lello, no Porto, ou El Ateneo, em Buenos Aires, temos a obrigação de eternizar - por nos eternizarmos com eles. Afinal, é ele, o livro...