"bebo mais, até que a solidão se perde na espessura turva do vinho. às vezes morre-se tanto, e tão cedo!"
Al Berto, Roulottes da Noite de Lisboa
fotografia de eurico portugal
toda a memória recorta imagens fixas
de um tempo em que ganhámos
terra firme
as bocas falam
o calendário ruge
mas
apenas desejo os doze pequenos silêncios
que escuto quase sem ferir o olhar
– pergunto-te de onde vimos
tu e eu
poemas sem medo
a acorrentar ruas inquietas
ao corpo?
hoje é o dia
de nos fixarmos no ponto
que grita pelos mortos
que desenterra os vivos
o dia dos futuros possíveis
e dos livros que nunca escreveremos
– porque o tempo que nos sustinha o olhar
lançou a pele à terra
e todas as estrelas apodreceram
no bolor da sua voz:
nenhuma linha é perfeita
à superfície da noite e da loucura
hoje é o dia de recordar
hoje é o dia de esquecer
o dia
de amar rosas com os dentes
de dizer poesia
de beber bocas e amansar línguas
hoje é o dia
de esbanjar desejos que daqui a um ano
reinventaremos
[apenas palavras
sem antecedente
num abrir e fechar de pálpebras]
toda a matéria é mentira por isso
hoje é o dia
de estender os dedos
escarnecer da distância
e tocar a ponta extrema da estrela:
a noite segura todas as presenças
às cavalitas do tempo
com que pássaros debicam as pálpebras
e nos fazem chover.
só ali
sob o teto de estrelas
habitamos sorrisos
e oferecemos as mãos
enquanto o balanço das promessas
arde na lareira do tempo.
eis a noite a inventar o calendário.
e fomos meninos
a escalar o sol em brincadeiras de açúcar
e fitas nos dedos
com que embrulhamos o coração.
e somos meninos
porque lá longe
e aqui tão perto
brincamos com os rostos silenciosos
que sustêm a memória,
os de ontem os de hoje os de sempre
enquanto deciframos mapas
em que nos perdemos
e em que perdemos –
feitos de pele e lábios, uns,
pele e sangue, outros,
pele e gente, todos
– porque, com braços magros,
já não dizem
mas tudo são
nesse silêncio intacto que se vê
para além dos olhos e de todo o corpo
para além das pétalas e da dor.
a noite é todas as noites,
noite feita para amar
e para o repetir com todas as palavras
noite quase gente
noite de dar nomes às flores
e de saborear os frutos
noite impronunciável
noite-mesa noite-mãos noite-fogo
sobre a estrela que ilumina os caminhos.
e em todos os olhares-meninos
o tempo avança sem destino:
a noite é infinita
e todos os futuros são possíveis
Dos carros que passam, o único que talvez pudesse ter-me dado uma boleia
ia no sentido contrário ao meu.
Jack Kerouac, Big Sur
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às vezes chegava tarde
carregado nos destroços do corpo
impossível apagar os vestígios
da noite
com que sujámos as mãos
porque as bocas depois do incêndio
erguem cicatrizes regadas
com os dias lentos de não-regresso
na memória desabitada
um beijo
breve, subtil, espetado na melancolia
de palavras
abandonadas pela saliva
por tudo ser mentira varrida para debaixo
do
tempo e das travessias:
roupas rasgadas
a ferocidade de orquídeas
e o rastilho do sexo a tatear pela chama
mas a cama, essa,
deitada numa carta
quase um rosto, um talvez rasto
invariavelmente anónima
sempre sem remetente
passei a chegar cedo
mas a noite continua a atravessar-me
os pulsos – então sei:
a vida e a morte pertencem-me
para esquecer o som agudo deste grito.
O castigo que escolhi
para mim próprio é saber aquilo que aconteceu a seguir.
José Luís Peixoto, Cemitério
de Pianos
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passaste por mim de rompante
maldizendo
os que comem a terra e as suas larvas
os que têm relógio, tempo
e sabem de que matéria se faz a espera.
foi apenas por um instante que te detiveste à minha porta
por receares morrer aqui
[sim,
todo o corpo tem uma morte
mas nem todas são iguais]
e rejeitares ter
a vida já toda inscrita nas mãos.
eu sei,
tu és gato em rua deserta
não temente dos cães noturnos,
sem recear a luz bafienta sobre o granito
e até a tigela com as sobras da miséria
te aquece o sorriso.
e passas,
passas sem um aceno, um bilhete, uma nota
e quanto àquele número de telefone:
extraviado nas azenhas do tempo
mas ainda a consumir
em fogo brando
os mesteres do olhar.
ao longe a cidade ressoa
e o canto volta as costas a tudo o que passa.
silêncio.
há um vazio nas esquinas onde perdura o teu perfume
ali mesmo
onde lavámos os nomes
e os incêndios agarrados aos corpos.
deito-me. levanto-me.
por vezes sangro e esqueço
e hoje sei tão pouco de ti
e ainda menos de mim.
Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida.
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
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O cinto ergue-se acima do medo injetando, em cada chibatada, o veneno a que chamava vida. Os gritos das duas mulheres rasgam o silêncio de uma noite que volta as costas àqueles que não sabem dormir, mas, sobretudo, àqueles que não podem dormir. Com o olhar vazio, fixo num ponto onde nem a poeira fazia morada, Maurício Caridade prossegue na sua romagem penitente: o corpo, rígido, acende a pólvora dos músculos em pêndulos cadenciados, como as rotinas que não desejamos mas se nos fazem inevitáveis; no estertor do combate, uma veia do pescoço entumece à passagem do ódio, atiçando os dentes e palavras curtas que cospe em ladainha não tanto pelo ódio à mulher e à filha que sofrem às suas mãos, mas antes por acreditar que na desintegração dos sorrisos estaria a penitência para o maior dos castigos que assiste ao ser humano: ser.
Foi sempre um homem de grande devoção, alguém para quem o corpo não servia nem para dentro dele se poder existir. Maior do que a sua fé em Deus, apenas o medo do demónio que, conforme lho desenharam na catequese, exibia esgar desafiador e cauda lasciva enquanto a língua bífida molhava todos os desejos, essa matéria demasiadamente humana, por isso proibida, tão falsa quanto a respiração das paredes ou os afetos das águas. Todo o seu percurso se fez em solidão muda, recalcando tudo o que apontasse à expressão dos sentidos. Não se compreende, ainda hoje, por que razão casou com Maria Ascensão, ainda menos como lhe fora possível conceber Amélia, a jovem de 16 anos que escondia incertezas sob a roupa. Por causa dele, Ascensão perdeu a inocência e os tons de açúcar com que qualquer rapariga esmaga a morte e idolatra os sonhos, vivendo agora agarrada a um casamento derramado sobre a loucura (como se ela pudesse ser mais ácida do que aquele colete de arame farpado que Maurício lhe vestia, a cada voo noturno, sobre a cama).
Terminado o ritual, o silêncio voltou, mesclado agora com o aroma doce do sangue e da desonra, numa recriação de tons que apenas o pesadelo conhece. Somente a respiração resignada de Ascensão e o soluçar surdo de Amélia atravessam a luz baça do quarto, orquestrados pelo tiquetaque de um relógio de parede que enfeitiça fantasmas no interior da linguagem. De bruços, imóveis sobre o chão, as duas mulheres reencontram a semiconsciência atirada desde a ponta do corpo até ao extremo da violência. Do outro lado das sombras, de novo a ladainha masculina a aveludar o espaço e o tempo, enquanto do alto do crucifixo um Deus inexpressivo parecia nada compreender.
De súbito, os olhos de Maurício rasgam-lhe a paz fervida. Diante de si, segurando uma faca de cozinha, Lúcifer, o demónio que tanto teme, ele mesmo, sem enviados ou intermediários, como se a raiz do mal só pudesse ser combatida pelo próprio mal. As mãos, pequenas e magras, nem parecem ser verdadeiras como nada na vida daquela família é. Enquanto o metal luzente volteia no ar, Maurício entorna o medo de uma só vez para se fixar no convés do tempo, no passado dos outros, dos que existiram e dos que inventou. Todos os rostos lavados pelo sangue e pela sua mão impiedosa passam diante de si com uma nitidez que nunca tiveram no momento em que os conhecera e, sem entender, as lágrimas começam a obliquar-lhe do rosto extinguindo-se antes de lhe chegarem ao peito – quantas coisas são mais do que parecem? Todos os rostos e agora mais um: o seu, rasgado pelo movimento seco, certeiro, de um único golpe. Os olhos anavalham agora as imagens, tornando-as pálidas e confusas como as derradeiras ondas a circundar as ilhas da existência. De certo tinha apenas que, na asfixia do destino, usar o mal é um modo de esquecer ou de não lembrar; de definitivo Maurício tinha agora somente a morte.
Estava de regresso o silêncio embalado no movimento esquecido do relógio de parede. A roupa que um dia Amélia trajara no Carnaval desprende-se lentamente do seu corpo caindo abandonada no chão do quarto, agora manchada num sangue que a torna ainda mais rubra. Nenhum olhar na nudez daquele pequeno universo feminino que se libertara do caos.
são assim os olhares de outono,
azuis como o pijama às riscas
onde bordas
ponto por ponto
o rasto da noite
enquanto as demais estações
arriscam a sobrevivência
com a porta fechada
os dedos estendidos sobre a boca
e a canção que entoa acordes de loucura.
houve tempos em que preferias o verão
[disseste]
e a respiração colorida do sol
na roleta-russa dos lábios
ou nas engrenagens do coração
recordo ainda o inverno
a trajar meias de lã até aos joelhos
e a cada arrepio
o corpo
projetava sombras de licor
na cal, nos lençóis, no sexo em flor
da primavera perdi o tempo
o compasso de um mundo
que compunhas com o nome
e todos os cristais
com que remexias o silêncio
[sabíamos lá que a rota das aves se extingue no orvalho de cada manhã?].
nunca soube muito de ciência
porque a verdade acena-me
desde um lugar transparente
alguns centímetros abaixo da cabeça,
lugar onde a cegueira mascara a escuridão
e as palavras que ardem
em candeias
explodem antes de se tornarem
perfeitas, irrecusáveis ou mesmo vivas.
e é sempre tarde depois que morremos
porque as coisas são sempre outra coisa
e a beleza de outrora é somente lágrima
escorrida
em jarra sem flores
onde agora procuramos equilibrar a voz
arrancada às costas de um mapa.
como os olhares de outono, afinal:
luzes suspensas nos peitoris das janelas
a existir pelo lado de fora da noite;
os teus olhos e os meus:
transfusão de imagens
esquecidas dentro dela.
é ao lado esquerdo do poema
que se agarra o olhar.
o labirinto de palavras revela paisagens
corpos esquivos
ou até a ciência das mãos
com que se a-prende o amor.
a noite impressa na página
esconde a embriaguez
de uma respiração lenta,
como a de homens a fugir das nuvens
que já não sabem chover.
tosse
tontura
e o corpo a abandonar-se em cada palavra
como se os frutos nascessem podres
e acabassem antes do suco na boca.
um cigarro interroga-me: terás ainda flores vivas nos lábios? com que cor se pinta o amor?
é meu companheiro
e pelo fumo ergo-me acima de templos
desvendando rostos que abandonei
à beira-ser.
hoje, porém, por cada ilha que perco
menos a resposta se faz clara
nos dedos a enrolar a melancolia do filtro
e o frio húmido do teu olhar.
tosse
gola do casaco chegada ao pescoço
ponta do cigarro no chão
biqueira da bota a rodopiar na cinza
sei que podia ter sido muito mais
do que o poema me segreda
mas até já o fumo se atrasa na convulsão do sangue.
ainda há o lado direito do poema – penso.
é lá que a luz viaja à velocidade do desejo,
volteia no ar com a pele eriçada
e os dentes cada vez mais brancos
mas nem assim chega para acender túneis
ou apaziguar relâmpagos.
sei onde a fuligem desenha os corpos
e em que poema inteiro um dia morremos
mas saberei voltar a esconder ao monólogo
a chave da solidão?
o encontro do homem com os seus fantasmas ocorre sete vezes,
tantas
quantas as vidas que lhe disseram ter.
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É sempre assim quando percebemos
que o gato que nos define é, afinal, farsa com que os homens enganam os homens.
São sete as vidas que se anunciam e,
seja porque o ocultismo dos números lhes seduz os passos, seja porque há a
fatal tendência para deixarem a esperança transcender a realidade em tudo
quanto fazem, a verdade é que lá se convencem de que podem morrer tantas vezes
que nenhuma se fará definitiva.
Adérito perdera a memória antes
do corpo mas nunca a serenidade de perceber, para lá da consciência, que cada
vida é toda a vida e que não valeria a pena esperar pela seguinte sem antes
consumir as anteriores. Cresceu, aprendeu com as ruas, arranjou uma profissão,
uma casa, mulher e a tudo chamou vida seis vezes, mas a cada vida ganha, outra logo
lhe fugia: a despedida dos pais, os desentendimentos com a filha, o resgate do
jogo e outros tantos caprichos do fado roubaram-lhe todas as vidas, uma a uma, contadas
escrupulosamente pelos dedos que não se esgotavam apenas numa mão.
Era, hoje, um homem velho, tendo apenas
por companhia reflexos de luz indireta onde escondia as linhas do corpo e a
imagem gasta no espelho. Degladiava-se consigo mesmo por não entender a
contradição: se até ali viveu à bolina do que conquistara, por que razão se
entregava agora ao tiquetaque arrastado do tempo? Gostava mais de pensar do que
de falar, porque se convencera de que as palavras ditas o afastavam de si arremessando-o
para junto de seis vidas que recuaram ao ritmo dos passos perdidos. Pensava,
sim, e fazia-o de olhos fechados para não ver e por acreditar que o que se
afasta das retinas nunca chega a existir. Como a sua sétima vida, afinal, a
escoar-se no pavio da vela que acendia a noite naquela varanda de 5º andar. Se
em cima balouçava as esperanças no fato negro de cerimónia, lá em baixo nada
existia, escondido na cor amarga daquela noite de sétimo céu.
Da velhice leva que não somos o
que queremos porque o desejado é
sempre ancoradouro vazio de embarcações passadas que não mais regressam. Já nem
sabe se alguma vez quis ou se chegou mesmo a viver, porque não consegue recordar.
Um gemido de gato, debaixo dos
pés, devolveu-o ao tempo que passa pelo lado de fora do corpo agitando-lhe o
coração, que agora batia ao ritmo do que esquecera (ou não lembrava). Não
sentiu medo, todavia, porque os enigmas que nos habitam sempre nos compreendem.
Tudo se erguia, agora, numa existência felina, numérica, quase impercetível e apenas
a laje fria em que assentava as mãos lhe dava a sensação de materialidade. De
novo o gemido, uma vez, e outra, mais outra, seis vezes no total, acompanhado da
orquestra de latas viradas no asfalto antes do salto no silêncio. A noite
entregava-se ao homem e ao seu destino.
O silêncio lavou-lhe o rosto com
sete gotas de sangue.