terça-feira, 30 de julho de 2013

ode ao corpo e a todas as suas pétalas

... o arrebatamento a que são dadas certas águas.

Luís Miguel Nava

entrego-te o corpo
a que deste o mundo,
corpo-homem
febre animal fruto
de pele açucarada
sem clichés ou hesitações,
[
agarro-te as escamas
que volteiam
como peixe esquivo algures
entre a terra e o céu,
[
farejo-te a estrela, os lençóis
de luz
para beber de ti o sorriso
e a pálpebra fechada,
[
mordo-te o palato
à distância do umbigo com que gritas
nunca
[
mergulho os lábios
nas gengivas:
[
e o mel
em cascata, a explodir
entre as pétalas e a raiz,
é cavalo de encontro às nuvens
farejando crisântemos e pólenes
como um poema de carne
nas tuas mãos
brancas
silenciosas
absolutas
[
como todas as coisas que respiram
mesmo depois de morrerem.


fotografia de jorge pimenta 


sexta-feira, 26 de julho de 2013

pedras da calçada da vida adentro [IV]



porque só à primeira metade do poema assistia o mistério da respiração

Herberto Helder, in Servidões



I. um poema e alguns suspiros em voz pesada para
nudez masculina  

é o poema,
um par de linhas apenas
para a página escavada
ao ritmo das mãos

é o poema,
masculino, severo, atento
às sombras e aos outonos
adormecidos sob a pele

é o poema,
a massa assimétrica de formas,
rosto feminino
a  sorrir linhas de algodão
enquanto o corpo espreita
em tons de açucena e mariposa
o contorno da boca com névoa nos lábios;
e nos dentes: a pedra que esmagou
dedos, letras e todo o desejo
de escrever

é o poema,
e tudo o que o alimenta:
ciclo de sangue a escorrer pelo
tubo da esferográfica
que se devora a si mesmo,
fundo, impossível, quase lunático
como cada linha do rosto escavada
pela memória da utopia
mais ainda da distopia

nem eu sei o que é...
poema ou linha de morte
sobre pulsos magros que ligam
o grito ao silêncio:

poema:

o milagre do homem à espera
do homem.

fotografia de eurico portugal



II. traço sobreposto para extinção do corpo e do tempo

a imagem corre a meu lado:
um ponto anónimo
veia indómita
apenas traço.

atiro a pergunta ao silêncio
e o dardo trespassa todo o
sangue
em sorriso brando
olhar em equilíbrio suspenso
perpendicular ao movimento do pêndulo que
tudo acende
tudo luz e explode
em sangue de gozo fino
sobre a artéria da eternidade.

a imagem corre a meu lado:
e eu que já não tenho corpo
para ganhar
o tempo.

fotografia de eurico portugal


sexta-feira, 19 de julho de 2013

pedras da calçada da vida adentro [III]

Hoje tenho medo de ter sido

Fernando Pessoa, in O Marinheiro



I. dúvidas para existências e tantos aconteceres

arrisco o olhar
tento o  amor
e atiro-me ao movimento
como o cordão à volta
do pescoço
a remexer sangue e
espinhos
com que se aprende a
vida
e se crê na palavra
indomada.

já tentei tantas formas de
envolver o teu corpo na língua
de aromas
à velocidade da noite
que logo me sei iminente
para,
no instante seguinte,
tudo esquecer

de novo.

fotografia de eurico portugal


 II. janelas de além-corpo

não tenho muito mais tempo para saber
morrer,
os capítulos maiores da minha vida
esqueci-os já

é o momento de fechar a
cortina do corpo
o minúsculo poro escuro
de profundidade indefinida,
quase invisível
como os dias cegos
a escorrer pelas retinas
numa hipnose de janelas e nuvens.

há ainda quem acredite em fugas
quando os dentes apodrecem e
as bocas permanecem indiferentemente
sujas?

fotografia de eurico portugal



 

terça-feira, 9 de julho de 2013

senhas e códigos para alguns recomeços


fotografia de eurico portugal


I.
procurei-te na dislexia do nome
com que se escrevem alguns fins de mundo
e foi aí,
na encruzilhada de um tempo queimado,
que me deixei vencer pela poesia,
sempre mansa, gato de pelo macio
a ronronar vontades para
no instante seguinte
esgaçar a voz com uma unha
feminina encarnada
impecavelmente tratada
como toda a saliva que queima
até ao caroço.


II.
no dia em que me esqueci de ti
desatei a mentir
a inventar primaveras e a
despedir falsos silêncios
como o pão, o vinho e tudo o que
ilude o corpo

no dia em que me esqueci de ti
jurei cicatrizar o mundo,
mas há imagens que regressam
sempre
a pingar pelos dedos
em cada coágulo de céu.


III.
há uma morte escondida
no outono da pele
trespassada pela terra,
rasgada pela boca:

toda a mentira menstrua
e as palavras
apodrecem antes do
parto.


IV.
fim:

eis a mais fina linha de luz
no hálito do
esquecimento:

a eternidade é sempre demasiado
breve
quando a projetamos entre
a certeza e o medo.

fotografia de eurico portugal



.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

diário do verão para certezas avulsas e breves singularidades


pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer.

Al Berto, O Medo


fotografia de eurico portugal



desço
por dentro e a prumo a cada
incêndio do sangue,
do próprio deus,
a embebedar o vento no rosto
enquanto fugimos daquele
verão:

o tempo das certezas sem interrogação
a arder na claridade como
ondas invisíveis,
o querer altivo de figurações
e poemas completos:

foi o estio dos homens
grito e silêncio na generosidade dos corpos
por não poderes fugir do que não alcanças,
verão sem rosto
a dissolver frutos vermelhos dentro de ti
lentamente e sem embaraço
seguro de que as asas do voo cicatrizariam
feridas e tempo:

eu era o mistério a habitar-te as mãos,
eu, da cor dos teus olhos,
da terra húmida e do frescor que não se esquece,
eu tinha fé no tempo nas imagens e nos símbolos;
tu, apenas desejavas rosas
mas temias o vento que nada faz mexer:

o verão passou
e a boca, sentada no peito moribundo,
mordeu o silêncio branco do ar
atirado ao chão,
nenhum de nós o ousou respirar
e tu morreste
e eu morri:

regressámos aonde nunca estivemos
acreditando ter vencido o tempo das palavras
sobretudo o tempo sem palavras:

hoje,
é julho,
o mercúrio aquece a pele
e a vida inteira é mais longa do que
as sombras de abrigo:

ao regressarmos à gaveta do tempo
teremos esquecido a rota dos pássaros
e a leve alegria dos lábios
lentamente
como quem procura o outro no espelho
mas somente se encontra a si:

hoje,
é julho
e continuamos à espera da imagem do verão
e do reflexo de cada um dos seus incêndios.