sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

pedras da calçada da vida adentro [VII]


I. imagem e reflexo

é a besta, a fúria a varar
a noite
é o suor do couro
o ruído, os cascos
e a tempestade do sangue
a invadir ruas
que se arrastam para dentro das mãos
com que escreves as cidades
do teu corpo.

fotografia de jorge pimenta


II. pós-socrático

sabedoria infusa:
começamos a morrer naquilo que
sabemos.

fotografia de jorge pimenta


III. pena capital

tocas os dias que faltam
com lágrimas futuras:
a noite pode até doer
mas o tempo há muito deixou de existir.

fotografia de jorge pimenta


IV. canção líquida para o fim do tempo e o início do fogo

há dias em que a felicidade te visita,
fins da tarde
a mesa de café junto ao rio
a luz do sol a obliquar-te no rosto
enquanto a água lava estações
e brincadeiras
que te tornam para sempre menino

abres as mãos que não acabam no tempo
e descobres:
o lugar é incerto mas é nele que escavo o fogo.

fotografia de jorge pimenta



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

sopros de infinito para ato único


as mãos, os pés calçados de luz, olhos inchados
ele caminha
vinho, bebe vinho como os deuses
esquece os corpos que o povoam, ouve vozes
pressentem-se vozes
[...]
caminha, resta-lhe perder a memória
esvaziar-se

Al berto


fotografia de jorge pimenta


nenhuma atenção se recorda
de mim
em cada acaso de infinito
e sopro de intento,
as possibilidades cresceram para as mãos
como ciência errática
e sabedoria infusa.

eis-me o instante,
apenas esse ponto-vestígio
e luz indestrutível de todo o
cabimento
no palco iluminado de nadas
onde a linguagem do coração
representa brisas
e atiça ouvidos.

dás-me a dança invisível
para sonho descosido
nessa peça onde açucenas ousam
lugares e alguns regressos

e eu aqui,
palavra sem sintaxe,
apenas céu aberto
em voo de rotações e translações
para ato único.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

livros lacunares, hesitações e toda a cegueira


No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar...

Mário Quintana


fotografia de jorge pimenta



fechei o livro e todos os rostos que nele
habitam.

já sei tudo, tudo:
barcos mares marinheiros
e toda a ancoragem de árvores no peito,
aprendi rostos em penumbra
sorrisos de meio lábio
e todo o fogo,
achei cânticos embriagados e telhados
ainda vozes que crescem no labirinto
das mãos.

sim, tudo sei:
da morte e da loucura do sangue
da mitologia da ausência
ou das noites inteiras, intactas, soberanas
[como aquele olhar que é só teu].

tudo, sobre todas as coisas
e quase nada me assusta
porque o tempo adormece no milagre
das páginas.

só do que não sei:
o homem ama antes de todos os livros.
[terá este sido escrito, já?]

[texto de 2011 revisitado e reescrito para a VI Antologia de Poetas Lusófonos]


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

pedras da calçada da vida adentro [VI]


dedicado a um amigo que, cansado dos homens, engoliu o tempo e todos os seus silêncios.


fotografia de jorge pimenta

I. cicio de pedra e um tanto de silêncio

o olhar dentro dos lugares
como pássaro preso ao céu da boca:
o passado é apenas
monólogo
com que despediu a voz.


fotografia de jorge pimenta


II. calendário dos homens

um dia de pedra, o corpo a desprender ramagens num desses outonos que farejam os frutos da brevidade no calendário dos homens.


fotografia de jorge pimenta


III. clepsidra lascada

são nomes guardados na transpiração
nomes com que aproximas
o fim do mundo e as extremidades
dos dedos
tantos nomes sem mapa
apenas loucura a sangrar fígado
sobre os corpos tombados
lado a lado
cansados de ser
num derradeiro silêncio sem espera.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

semicertezas de uma noite de anseios e distâncias


metade de nós o que não sabemos; a outra metade... o que não recordamos.

jorge pimenta


fotografia de jorge pimenta - museo reina sofia, madrid


imagino um céu sobre nós
cavalgando a noite
velozmente
como o corpo escala
ruelas femininas

imagino lugares limpos
baladas
véus descalços de meses
e calendários transparentes

imagino-te nua,
adivinho-me a arder
tu e eu,
escadaria invisível
de boca em boca
de ilusão em ilusão
algures
na derradeira certeza
das mãos frias.


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

galeria: a asfixia da voz de vez


entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Mário Cesariny, You are welcome to Elsinore


fotografia de jorge pimenta


há palavras que não chegam para
te dizer,
estáticas mínimas
contaminadas de sílabas
e outras teias de mar
com que desprendes porto e pouso.

por isso passas
segues à velocidade
da luz
deixando,
entre as mãos e a obra,
umbigos de
tinta rasura e folhas rasgadas
a rugir imagens
e espantos:

é preciso ver
é necessário tocar
é urgente desintegrar as palavras
e todas as suas mentiras

de vez.


 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

oração


Pesou-me na carne sua coroa de espinhos
E eu nada quis ser para não fazer barulho

Ira Buscacio, Um estranho quase íntimo


fotografia de jorge pimenta


mãos a prumo em novelo
de lã,
pulsação do sangue
estação quente e
cio,
toda a seiva masculina
a escavar o ventre
na incandescência
do fogo

aqui
o corpo a cerzir
cansaços,
ali
artérias a rugir
embaraços

enquanto das gengivas
escorrem
migalhas de pão
e mesa vazia
porque lá fora és somente
chuva frio e tantos vestígios
de setembros e
desfolhadas
naufragados no calendário
de frutas macias e outras tantas
fulgurações

é esta a canção do homem
em que fundes o corpo e cada uma das
recordações:

a memória é dardo e mãos
a farejar o ouro que
não é.


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

o inexprimível universo de nadas



a sua sombra chegava sempre primeiro do que a minha aos desníveis da terra

António Lobo Antunes, Não é meia noite quem quer



fotografia de jorge pimenta



desatar a boca:
ser sonâmbulo
escutar a noite e o som
do fogo
naquele verão desabitado
de lábios e beijos
esquecidos

desatar a boca:
singrar urgências
sangrar lábios
gumes alagados de saliva
na espuma arável
de tantas mortalidades
em explosão lenta

desatar a boca:
arder excessos torrenciais
em sulcos de rebentação
nos lírios de entre as pernas

desatar a boca:
um morrer de nada um morrer de tudo
no gozo fértil da humidade do teu
orvalho

desatar a boca
e o bolor
de alguns inexprimíveis
recomeços.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

pedras da calçada da vida adentro [V]



Se não me amas, por que me avisas assim da dor?

Rosário Pedreira



fotografia de jorge pimenta: ícaro-homem


I. memória de um nome

é ele, o nome
a pontuar vigílias
nos lençóis
em cada regresso ao rumor
da noite:

é no silêncio
que disperso fantasmas
e toda a cal da sepultura.


II. carpe diem

o vinho
o amor
e toda a verdade:

só a vida pode desejar descansar
da vida.


III. poesia

poesia:
fome e alimento
osso ferida ressurreição
abelhas a acoplar o sangue
candeia cega
e alumbramento
olhos que veem para além das imagens

e eu aqui, moribundo,
sem saber como fecundá-la
com as minhas palavras.


IV. troia

entre o sangue de
páris
e o veneno de
helena:
o inexprimível universo
e cada um dos seus
nadas.


sábado, 19 de outubro de 2013

nota sequencial para versos de outrora



O destino que se cumpra,
se o destino for
Eu apenas quero a flor
de uma última penumbra,
onde a sombra,
entendo eu,
é apenas o lugar
onde a luz
pode declarar-se
verdadeiramente.

Wilson Caritta Lopes


fotografia de jorge pimenta


Vestido de preto, entrou no quarto de hotel. Dirigiu-se até uma bancada sem acender as luzes. Do lado direito das cortinas cor areia, um feixe recatado de luz pedia licença para lhe iluminar a silhueta e protocolar pequeno testemunho. Sobre a bancada, remexeu em pastas procurando dados entre os dedos, como quem colhia frutos de própria estação. Deletou pensamentos, buscou arquivos e o abraço dos amigos. Recordou-se de quando expelia arco-íris pelos poros, do sorriso fácil e que construía degraus de nuvens entre os versos. Que um dia amou e no outro também.

[Em pedra-ferro, cravada à beira do abismo, entre o temporal e o sol laranja, rezava a escritura:

é esta a minha terra,
o lado norte dos versos,
um país, uma palavra
toda a verdade.
terra branca
letra e poema de tantos segredos
dentro e fora de mim,
a semear braços, horizontes de anis
e outras moradas
onde escrevo,
aplaino rimas
e reinvento silêncios

De entre as pastas, selecionou apenas duas. Saúde e justiça são irmãs da mesma verdade e parceiras da mesma dor.

[Lenda, Poemas em Autoplágio ou apenas imaginação. Cravada à pedra-ferro, rezava a escritura:

o poema corre-me com a água
do canto
lava leve lembra
é este o som é este o sentido
porque as estrelas de dedos longos sempre tocam
as portas e os girassóis
que cabem no mundo:

é aqui, no verso,
que sou todos os homens
é aqui, no verso,
que me esqueço do tempo
é aqui, no verso,
que escavo o fogo.

eis-me o verso.


Com semblante seguro, passou pelo umbral carregando as pastas em baixo do braço esquerdo e mais duas gotas de certeza: homens de bem e poesia jamais falecem a causa da senhora realidade.

Foi quando o poeta tocou a primeira nota sequencial para seus versos e ela espirrava como a alma.

                                                        Em memória do poeta Wilson Caritta Lopes
(1964-2013)

Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

dois poemas e algumas significações soltas


I. esconde-esconde

veia de espuma
pulsando orla e horizonte:

do tempo [ainda] nada
sabe,
diante de si
os oceanos são transparentes
e o tempo floresce na
palma da mão.


fotografia de jorge pimenta



II. escalada para entardeceres e catos em flor

já não tem nome
talvez nem mesmo idade
o gato que
rouba gemidos
enquanto partes para o
sul

sobe a rua
desafia a chuva
e, à porta,
estaca:

é outono
há folhas caídas e madeixas
a remexer fios coloridos
que um dia ergueram
telhados serenatas e suspiros.

do lado de dentro,
sabe o que encontrar:
luz apagada
lua pela metade
e uma derradeira certeza:

a morte é a ausência a habitar-lhe
a voz.


fotografia de jorge pimenta


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

treze versos para curva e despiste


fotografia de jorge pimenta


demorei, um dia,
no teu olhar
álcool sangue e leite em
verso

hoje
sopro língua
e perícia
com batom pó de arroz e rímel
à espera que tudo corra
que tudo siga
que tudo faça:

a que velocidade é que os corpos se
despistam?



domingo, 22 de setembro de 2013

o alfabeto da melancolia: até ao fim do tempo


Quando a minha mão
ia colher um fruto
o gume da folha feriu-me os dedos.

Yao Jingming, A noite deita-se comigo


fotografia de jorge pimenta


não sei já a cor das açucenas
e o arco da noite há muito atira
trémulas paixões à rua
onde um gato vadio
ensina versos sem rima à luz
do candeeiro.
a pouco e pouco o gás acende
presenças
enquanto lá em baixo,
junto ao rio do nome,
os navios dos ossos adormecem
insónias na tua voz.

és tu a noite,
a chama fria a atiçar roseiras
com palavras abandonadas:

sei que um dia desejaste a mudez
dos espinhos
que não podes dizer
mas hás de repetir "amo-te"
antes que o mundo desabe
e os corpos se despenhem na melancolia
do fim do tempo.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

murmúrio para cordas, velas e um tanto de mar


Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo e todas as paredes, se for preciso.

José Saramago, Memorial do Convento


fotografia de jorge pimenta


depois
o gás o adormecimento o tédio
a oxidar estradas no corpo
sem traço linha ou papel

depois
o olhar esbagaçando pretéritos
até à asfixia
porque há um ventre a atiçar desejos e
um sempre a arranhar solfejos

depois
a brevidade dos pulsos
atirados à corrida do sangue
dos astros dos lábios;
espera o estremecimento de cordas:
ganhou insónias e ninhos no ar
onde já nem aves migratórias ousam
amar

por fim
fez-se nómada
a clamar por linhas de pele e infinitos
horizontes,

hoje não sabe
medir o tempo
e esconde-se na retórica dos deuses:

nenhuma urgência será mais do que
sílaba esquecida no clarão
incerto de todos os
quases.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

nota introdutória para estranhos

Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar; [...] supus-me reduzido à maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar. Como é difícil controlar o amor.

Lima Barreto, in Triste fim de Policarpo Quaresma



É preciso estar atento
para colher os rápidos frutos
da dor

Adelino Ínsua



fotografia de jorge pimenta


O estranho aproximou-se, e sem pedir licença, sentou-se no mesmo banco, suponho que tenha me observado de soslaio, pois senti uma qualquer coisa de quem sabe ou quer adivinhar. Pousei meu olhar mais vazio por sobre as páginas do livro, deve ser assim que as atrizes representam. Foi quando cortou o silêncio com voz grave, como se apertasse a mãos firmes as folhas secas daquele outono teimoso de sol:
- Você é feliz? – perguntou-me sem qualquer cerimônia

é num recanto sem nome,
ponto mínimo entre a pedra e
a memória,
a agitar água saliva e servidões
com que espera vencer as suas pequenas
mortes.

nenhum vento nos tinge as mãos
na vertigem do amor,
esse sânscrito secreto
a incinerar desejos
e a consumir lábios
com que serenas,
minha flor de orvalho,
os ecos de fogo
que me lavam a boca.

quantas letras do seu nome
pousam
na primavera do corpo?

Cortou novamente o silêncio, e com a mesma voz grave, insistiu:
- Você é feliz?

Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta



terça-feira, 27 de agosto de 2013

dois poemas para ímpetos e travessias



Ama como a estrada começa

Mário Cesariny



I. gravidade

contei vésperas
amei ausências
jurei tantos mistérios
simples
neste estímulo de intentos
que me adivinho leve
a pairar sobre letras e cata-ventos
com que desfolhaste a terra:

hoje
esqueço-me de mim
no itinerário dos dias inteiros
ou não fosse o verbo o maior dos teus
silêncios.


fotografia de jorge pimenta



II. poema de fim de dia e seus quebrantos

escrevo versos como quem cavalga
nomes
como quem açoita
destinos:

afinal
é sempre tão húmida
a estação da saliva
com que velejas metáforas
e tantos impossíveis
meus.


fotografia de jorge pimenta



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

três poemas e algumas fulgurações


Tenho as mãos vazias de ti
neste hálito que ainda te respira

Ademar Ferreira dos Santos, in Descansando do Futuro


fotografia de jorge pimenta


I. caderno de viagem

capa escura
algumas folhas arrancadas e
umas tantas rasuras
dentes brancos pousados na
idade
duas glicínias
e a apoplexia da voz,
um gato,
sobretudo um gato, pardo e sonolento:

onde fica esse lugar a que apenas chegamos
quando se faz demasiado tarde?



II. um passo a menos

poema:
mão trémula
taquicardia
suores frios
e refulgência ocular

[esquecemo-nos tantas vezes
da vida]


III. variações em torno do amor de um poeta

submeteu-se a algo
insidiosamente
maior do que a chuva e o frio
em dislexia sobre a voz:
céu do peito atado à carne e ao dizer
língua entaramelada
e tantos outros coágulos de sombra...

alguma vez terá ele estado
tão só?

[e a saliva a escorrer vagarosamente
pelas frestas do passeio
ali
bem dentro do teu nome].


fotografia de jorge pimenta