sábado, 29 de junho de 2013

estreitas luminâncias para solidão branda e alfazema


O amor vem depois. Era isto o depois.
[...] um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.

José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis


fotografia de eurico portugal



Deixámos estações em cada um das mãos e encostamo-nos à sombra do mar: nem um rugido, respiração ou estertor. É por dentro, e de cabeça para baixo, que adivinhamos sentidos para os mapas de outrora e para a geografia da pele, onde deitados ou de qualquer forma sabíamos o cheiro e a textura dos fins do dia - lisos, ofegantes, agudos, até adormecerem nos corpos.
A valsa hoje é lenta e as melodias já não soam como dantes na estreiteza da dança, até porque dos frutos vermelhos já só lembramos o movimento dos lábios, para cima e para baixo, em círculos perfeitos que morrem docemente no contorno acidulado do sangue.
O tempo passa pela luz até à pausa da noite e a risca negra para onde tudo se volta lateja, como dantes, do lado pardo do coração; conheço as batidas de cor e o tempo e os lugares entre mim e o tiquetaque do que já não sou. Mas, que fazer senão riscar um fósforo, acender o verso e regressar, por fim, à planície vazia da página - de pé, as pernas firmes... e o olhar quase sempre mal iluminado.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Pedras soltas na calçada na vida adentro [II]


I - Estrabismo

São duas as linhas de olhar nos carris de um único horizonte. Hoje, obliquam no ângulo morto de um espelho a extinguir imagens como se nada tivesse acontecido no algoritmo sagrado do tempo.
Um e outro homem diante da mesma história, dos mesmos caminhos do corpo, do mesmo mapa de pele: sentado, exulta a locomotiva a rugir-lhe a juventude das mãos; de pé, sonha que as rugas se esqueçam de si.
Cansados das suas mentiras, encostam-se a cada um dos seus silêncios e aguardam que, linha a linha, as palavras se apaguem de vez no casulo bafiento da viagem - e a morte tornou-se a mesma coisa embora com outro nome.


fotografia de eurico portugal



II - Polaroid

Levantou-se, já trémula, e dirigiu-se ao passe-partout na cómoda do quarto. Uma fotografia antiga amaciada pelo tempo aguarda que a temperatura dos dedos incendeie a imagem até à carne. Era um rosto limpo, o silêncio de todas as coisas sem idade, a luz-luz de uma criança parada diante do seu olhar, enquanto do lado de fora do papel aquele instante era todos os outros que o consumiram na avidez do que não torna nunca.
Nem uma lágrima, nem um suspiro ou uma inflexão de voz: é este o castigo das fotografias: saber o que o tempo nos mostra a seguir.


fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 14 de junho de 2013

galeria VIII

I. niilismo

nada
ninguém

e
a palavra a verter sentidos

fotografia de eurico portugal



II. sim.tu.[nia] 
* para a dani carrara

sinto.

sim. tu.

fotografia de eurico portugal



III. melancolia
* para a andy

melancolia:

fogo roubado à espera
de voltar a arder.

fotografia de eurico portugal



IV. ode aos lábios vermelhos

lábios e sangue no pescoço
em viagem vertical
para pequenas mortes de amar
mais do que posso
menos do que preciso

fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 7 de junho de 2013

galeria VII


I. biblioteca

de súbito o frémito:
é a geometria da pedra
as toneladas de fogo até aos olhos
e a majestade do sangue
a percorrer metros de linhas
e tantos quilómetros de
viagens escritas,
ainda mais por escrever,
na contingência arbitrária
da palavra
da respiração aflita
e da grandeza inevitável:

tímida e certa,
restrita e absoluta
como tudo o que parte do corpo
em direção às coisas
que não têm preço.


fotografia de eurico portugal




II. pontuação

fosses tu poros e respiração
e eu apenas o instante,
sôfrego e urgente,

a pontuar-te todo o corpo.


fotografia de eurico portugal