sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

vagas de olhos claros sobre o homem e os seus lugares-por-escrever

O meu nome parou diante
do instante que o guardara.

Evapora-se a roupa, mas não sinto.

Herberto Helder, Canção em quatro sonetos


fotografia de eurico portugal


nas mãos do druida cresce a cegueira
insidiosamente visceral

ergue-se algures entre os pés e a cabeça
atira-se a cada ilha do corpo e percorre
as artérias do tempo,
cruzando membranas em navegação
cúmplice com os ossos

do outro lado do corpo
há gente que não conheceu
e nem as linhas que segura entre os olhos
claros e os dedos
saberão coser as vagas de sangue
que, em fulguração vulcânica,
apontam ao centro da terra,
a sua terra

a cegueira cresce a seu lado
e mesmo ali,
sentado na mesa do poema
diante da chávena de café,
ecoam palavras
com que rasgou tímpanos

permanece só
ele e a cegueira,
a cabeça cada vez mais centenária
como todas as coisas com que o tempo
castiga a vontade secreta de ter
chuva nos lábios,
esse sémen humano a lamber os ombros
do desejo
e a alagar recordações
antes de voltar a perder-se nos orifícios
escuros da terra,
a sua terra

ali permanece,
entre as cicatrizes e o orvalho,
sem ser capaz de dizer
sou o homem e o meu corpo ainda
está por escrever

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

poema para um homem, a sua morte e talvez nenhum regresso

haverei de me definir até à
exaustão e tornar-me
naquilo que nunca fui.

valter hugo mãe


fotografia de eurico portugal

chega clandestino e sem
aviso
o som que agita o
o dorso do homem cicatrizado
pela noite.
chega a meio termo,
entre o devir e a lágrima
de duas pétalas brancas
que prometeu não voltar
a colher.

no murmúrio da terra
o som cresce
faz-se maior
e o homem
deita-se com as amoras maduras
que enrolaste na boca
a escorrer resina pelo silvado
da pele.

recebe-o com linhas tortas,
marcas-d’água a trepar pelo
tempo
até aos braços de um deus cor de sépia,
louco e nu,
deitado entre o milagre e a
fotografia.

se o vento soprar de leste,
o tempo voltará a ser nuvem
nas suas mãos,
tecido a deslizar
sem pressas
para o interior da voz
para a magnólia de um poeta:
os lábios dentro do som
e o homem
a enumerar silêncios
com que atavas os cabelos
e que quase o
derrotaram

o homem.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

galeria III - o traço urbano


fotografia de eurico portugal


I. anonimato

recordo-me de tudo
por isso calo-me
por isso digo
quem sabe se à espera do fim do mundo
que leve os beijos
as garrafas entornadas
alguma pontuação
e todas as crepitações antigas
para aqueles lugares que clamam por
combustão
mas que nunca soube deixar arder.

só escrevendo a luz da morte
passo junto da multidão
sem que saibam quem eu sou.



fotografia de eurico portugal


II. [nada

[nada
persegues
[nada
te é devido ou prometido
[nada
nem mesmo
as letras e os sons
que cospem a palavra branca
a escrever todas as mortes:
[nada.

a mão esquerda aberta sobre o peito
os dedos apagados
em necrose
e todas as paisagens do corpo
[nada
apenas a intermitência de um
estremecimento.

o resto é
[nada
o resto é apenas o que existe fora de ti
por julgares ser eterno
o que dentro de ti já não tens.

[nada
e a explosão que não chega!?…



fotografia de eurico portugal


III. a viagem

embarcamos todos no silêncio
dos poetas preferidos
e nas palavras sangradas

a rota é açucena de papel
sem cor ou cheiro
[hipnose de ilusões]
enquanto no convés
apinham-se máscaras e espelhos
num estremecimento que
arrasta no ar
bons-dias!
obscenos, trajando
fraque e sapato de verniz;
boas-tardes!
enroladas no batom
a corrigir o risco do
lábio que não conhecemos

no intervalo dos corpos
e da insuportável cortesia
tudo passa exceto
as cores do que não embarcamos,
imóveis
despidas,
anavalhadas pela poeira
que cobre os objetos
algures entre o tempo e as lembranças
do que do tempo nunca
esquecemos:

às vezes gostava de viver no esquecimento
do que somos.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

o volume do silêncio nas réstias do tempo

On Jubilee Street there was a girl named Bee
She had a history but no past
Nick Cave & The Bad Seeds, Jubilee Street 


fotografia de eurico portugal


no cair da voz
deixo-te sozinha, entregue ao
silêncio e a um ramo de flores
sem ruído, sem um mover
de membros, sem um uma agitação
de músculos,
apenas o som ao contrário,
lágrima nas mãos
de piratas com memórias raspadas
e adagas a crescer nas pontas
das unhas.

o silêncio sobe
nos intervalos da sala, dentro
de ti e de alguns enigmas
a ameaçar o céu e o chão
de todas as coisas;
voltas as costas, falas
baixinho
e da boca de pétalas cospes
rebanhos de caligrafia em chamas,
a queimar fotografias e cartas
que se tinham esgotado, já,
na minha cabeça.

já não temos nome e a geometria
dos sexos é apenas todos os lábios
que beijaram e algumas línguas
a pingar para o derradeiro dia do nosso
calendário.
sobram os dias do porvir
outras contas
e talvez novas mentiras
a alicerçar este combate dos corpos contra
a solidão

enquanto a voz tomba
com estertor
no silêncio pardo de um abrir
e fechar de pálpebras.