domingo, 22 de setembro de 2013

o alfabeto da melancolia: até ao fim do tempo


Quando a minha mão
ia colher um fruto
o gume da folha feriu-me os dedos.

Yao Jingming, A noite deita-se comigo


fotografia de jorge pimenta


não sei já a cor das açucenas
e o arco da noite há muito atira
trémulas paixões à rua
onde um gato vadio
ensina versos sem rima à luz
do candeeiro.
a pouco e pouco o gás acende
presenças
enquanto lá em baixo,
junto ao rio do nome,
os navios dos ossos adormecem
insónias na tua voz.

és tu a noite,
a chama fria a atiçar roseiras
com palavras abandonadas:

sei que um dia desejaste a mudez
dos espinhos
que não podes dizer
mas hás de repetir "amo-te"
antes que o mundo desabe
e os corpos se despenhem na melancolia
do fim do tempo.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

murmúrio para cordas, velas e um tanto de mar


Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo e todas as paredes, se for preciso.

José Saramago, Memorial do Convento


fotografia de jorge pimenta


depois
o gás o adormecimento o tédio
a oxidar estradas no corpo
sem traço linha ou papel

depois
o olhar esbagaçando pretéritos
até à asfixia
porque há um ventre a atiçar desejos e
um sempre a arranhar solfejos

depois
a brevidade dos pulsos
atirados à corrida do sangue
dos astros dos lábios;
espera o estremecimento de cordas:
ganhou insónias e ninhos no ar
onde já nem aves migratórias ousam
amar

por fim
fez-se nómada
a clamar por linhas de pele e infinitos
horizontes,

hoje não sabe
medir o tempo
e esconde-se na retórica dos deuses:

nenhuma urgência será mais do que
sílaba esquecida no clarão
incerto de todos os
quases.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

nota introdutória para estranhos

Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar; [...] supus-me reduzido à maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar. Como é difícil controlar o amor.

Lima Barreto, in Triste fim de Policarpo Quaresma



É preciso estar atento
para colher os rápidos frutos
da dor

Adelino Ínsua



fotografia de jorge pimenta


O estranho aproximou-se, e sem pedir licença, sentou-se no mesmo banco, suponho que tenha me observado de soslaio, pois senti uma qualquer coisa de quem sabe ou quer adivinhar. Pousei meu olhar mais vazio por sobre as páginas do livro, deve ser assim que as atrizes representam. Foi quando cortou o silêncio com voz grave, como se apertasse a mãos firmes as folhas secas daquele outono teimoso de sol:
- Você é feliz? – perguntou-me sem qualquer cerimônia

é num recanto sem nome,
ponto mínimo entre a pedra e
a memória,
a agitar água saliva e servidões
com que espera vencer as suas pequenas
mortes.

nenhum vento nos tinge as mãos
na vertigem do amor,
esse sânscrito secreto
a incinerar desejos
e a consumir lábios
com que serenas,
minha flor de orvalho,
os ecos de fogo
que me lavam a boca.

quantas letras do seu nome
pousam
na primavera do corpo?

Cortou novamente o silêncio, e com a mesma voz grave, insistiu:
- Você é feliz?

Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta