quinta-feira, 25 de abril de 2013

25 de abril: a cor amarga da revolução


fotografia de eurico portugal


25 de abril de 1974:
depois do grito sem sangue
o ar encheu-se de promessas, cravos e
quase certezas.

assim abril:
depois do sonho,
o tempo a colecionar troféus
que apenas brilham na sombra
dos homens.
e abril adormeceu-os:
agora sem boca
dentes podres
e mau hálito
habitando silêncios num espelho,
creme anti-rugas e um par de mãos
cansadas de massajar cravos e dores.

abril tardio:
o dedo magro imita o vento,
primeiro sobre a testa e os sulcos vencidos
depois, nas pétalas do rosto, que foram já poema,
por fim nos lábios, agora secos
e abandonados, como as revoluções que se cansam
de esperar.

abril... sempre:
há uma morte invisível que nos agarra
ao silêncio
até nada mais sobrar deste mês perfeito
em queda livre.


fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 19 de abril de 2013

galeria V


I. a criança em ruínas
[título de livro de J. L. Peixoto]

adormecida a luminosidade do corpo,
há passos a encerrar corolas por dentro
enquanto a flor engilha entorna e cai:

a velhice é a grandeza dos simples
a trepar escadas até às mãos de um deus
tantas vezes sem rosto e quase sempre nu.

fotografia de eurico portugal



II. súplica para linha e seus desvios

o frio raspado a descer devagar
pela voz
enquanto pássaros roucos gritam
versos
a desafiar a loucura.
é assim tempo de saber tudo:
adivinhar as coordenadas do céu
desejar motores nas asas
suplicar por poetas esquecidos
para que a mão segure a inércia
do poema:

não adormeças, homem.

fotografia de eurico portugal



III. errância

há mortes que passam de boca em boca
como os beijos.

fotografia de eurico portugal

sexta-feira, 12 de abril de 2013

versos inclinados a lisboa e ao corpo




deste-me lisboa
[…]
és homem e eu mulher
não verbalizei os nomes
dos nossos corpos
mas foi como se o dissesse
quando te arranquei do medo
e o candeeiro se fechou na noite…

ode a lisboa, Ana Salomé




apenas uma linha
traço calcário a definir o que não foi,
enquanto pernas magras trepam, em
valsa lenta, pelas calçadas do olhar,
lisboa, estação do ano,
bairros a estender noites até ao
corpo,
rasura simples e
caligrafia incompleta
como se tudo fosse metáfora de
coisa nenhuma,
lisboa a tocar o céu
em monólogo
porque há um deus que dorme e nada
sabe sobre as vozes que falam
alto
lisboa de olhos abertos
lisboa adormecida
e o tejo, lá fora, a guardar a
chuva
em pequenos gestos sobre os dias
pontes entre ninguém e
toda a gente,
lisboa rapariga
a fazer ninho no poema,
lisboa mulher
a tombar por mim adentro,

e sobre os meus olhos caio
sem ruído
por não saber falar-lhe.

fotografias de eurico portugal


sexta-feira, 5 de abril de 2013

galeria IV


I. notas breves para mãos magras

encho a mala com este
chão de estrelas, a campainha
das manhãs e duas papoilas vermelhas
a dissimular mãos entrelaçadas

porque não posso não sei e não quero
sentir saudades de amanhã

fotografia de eurico portugal [estação de lagos]



II. ecos de voz [e nós]

nenhuma palavra está completa
sem a boca que a atice
sem o ouvido que a enfeitice

nenhuma palavra está completa
sem tudo aquilo que não pode ser dito


fotografia de eurico portugal [porto covo]


III. alguém, quem?

ninguém
entre si e o seu silêncio


fotografia de eurico portugal [metropolitano de lisboa]


IV. tirésias

fecham-se os olhos por dentro
antes durante e depois
de te ver morrer


fotografia de eurico portugal [bairro de alfama, lisboa]


sexta-feira, 22 de março de 2013

o verbo e os estilhaços do silêncio


Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis… […]
Não sei que é isto mas é o que sinto…
Fernando Pessoa, O Marinheiro


fotografia de eurico portugal


perguntas-me o que sou capaz
de ainda reconhecer.

desvio-me da pergunta
como quem tropeça,
evito os estilhaços
e volto-lhe as costas
[toda a linguagem queima quando
desferida por lábios
a afiar as lâminas dos deuses].

para trás, a certeza de
de uma distância percorrida
devagar por nunca saber o que respira entre
as palavras e o horizonte que as
delimita,
dois ou três livros sublinhados
pelo olhar,
tardes esquecidas que vieram comer
a luz,
copos a vigiar a noite
e um silêncio, como os cabelos,
estendido por fora da gola
e de alguns flocos de frio tombados.
de tudo te escondi:
álcool, poemas, palavras azuis, chão,
cães e ruas a farejar
nomes
um espelho vazio e alguns
[mais do que desejei]
agora não, depois sim, talvez mais logo,
de tudo fugi e só a quase nada
deixei debicar migalhas
de certezas.

que é feito do tecido com poros
escancarados
à espera que a noite selasse palavras
em dissolução lenta, rasteira,
quase invisível na mudez
de mim?

escondemo-nos num silêncio
que talvez nunca tenha sido
nosso,
tantas vidas esquecidas
e o olhar de costas para a porta que teima
em permanecer fechada…

ambos dissemos já o silêncio. e agora repetimo-lo
com todas as palavras.


sexta-feira, 15 de março de 2013

Melodia lenta para os dias no regaço da sombra


Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar.

Não é meia noite quem quer, António Lobo Antunes


fotografia de eurico portugal


Caem, diretas na sua mão, as bagas de marfim dessa planta sem nome que se conhece por trocar raízes com os pés. Nunca se perguntou se estava vivo, por saber que há respostas que moram não nas palavras que se inventam, mas nas sensações escorrentes, gota a gota, nos lábios, a obliquar para o canto da boca, sem aviso ou permissão, enrolando a língua em tons rubros e anis.
– já não tenho a vida toda – pensou – e os meus ouvidos reconhecem, agora, as melodias do frio que se dependuram nas varandas.
Sabe dos dias que segura com a firmeza dos dedos como sabe de tantos outros que, por serem maiores do que os bolsos, balançam, sem músculo ou gládio, na corda que abeira a calçada do esquecimento – livros e notas manuscritas conservando, ainda, a roupa em desalinho como um perfume atirado sobre a geografia do corpo; uns quantos discos que sabia de cor, a garrafa de vinho entornada e o cheiro vago que permanece depois; por fim, as paredes brancas, vazias, enquanto a porta batia, com estrondo, logo atrás dela (quanto de si se atirava para dentro do lenço?).
De todas as vezes, o mecanismo incompleto do silêncio na perfeita organização de uma quase morte. E o momento de reabrir os olhos e colher as bagas de marfim da tal planta que se conhece por trocar raízes com os pés:
– Em paisagens humanas, importa não envelhecer com medo nos olhos errados.

sexta-feira, 8 de março de 2013

depois [ou o tempo-advérbio na linguagem e na boca]


A vida espreita-nos sempre
Fernando Pessoa, O marinheiro


 fotografia de eurico portugal


depois,
a terra ergueu-se sobre
o tempo
– continua a chover-nos mas
o que é a pele senão
coleção incompleta de recordações
como o derradeiro olhar ou o leite de
figo a assanhar a boca?

depois,
o tempo deitou-se sobre
a ferida
– dói sempre tanto esse
intervalo entre a vulva e
a casca,
entre o vazio das pernas
e o fôlego do ventre

depois,
a ferida singrou ventos e linha
sobre mundos costurados
– tudo é demasiado na falência de
mãos impossíveis
enquanto os cabelos
tingem futuros com vendas
nos olhos,
tudo é demasiado no movimento
vazante

e nós… nós,
cada vez mais anónimos,
nós acaso sabemos
alguma coisa?