quinta-feira, 5 de junho de 2014

Escondido na luz pálida do fim do tempo


há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.

Mário Quintana


fotografia de jorge pimenta


Éramos demasiado novos mas nem isso nos impediu de colher ventos por debaixo do ventre. Sempre fomos metade carícia e um tanto tempestade, passos desalinhados à saída do tempo, essa galeria onde o perfume cresce do outro lado da luz a apedrejar o corpo e a volúpia. E, todavia, não deixámos de caminhar teatralmente para dentro das horas, por cima dos objetos, para além dos nomes.
O tempo passou ao lado das primaveras que arderam em versos, as linhas assomaram ao rosto, mas nem assim to disse, até porque sabias que eras tu quem levava toda a minha história agarrada à pele, cosida pelo lado de dentro, indiferente ao pus, ao sangue e ao esquecimento. Nada mais precisava de dizer, porque isso bastava para que tudo em mim estilhaçasse à velocidade de um jato desgovernado a abrir rasto nas nuvens, esse lugar único onde nem os deuses conseguem chegar e que os homens ousaram chamar de "amor".
Hoje, somos olhos vazios voltados para uma nova sentença: escassear sossegos e cicatrizar silêncios na grande armadilha para onde atraímos tudo o que não fomos capazes de vencer.


21 comentários:

  1. "Hoje, somos olhos vazios voltados para uma nova sentença: escassear sossegos e cicatrizar silêncios na grande armadilha para onde atraímos tudo o que não fomos capazes de vencer."

    Há palavras que nos atingem, como se alguém as tivesse resgatado, de um qualquer silêncio que sangra...

    Belíssimo, Jorge.

    Um beijo!

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    1. talvez sejamos quase todas as palavras e o infinito dos seus sentidos, sónia...

      beijinho grande!

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  2. Jorge,

    "Quanto de mim fica no tanto que em ti parte?..."

    ...

    Beijos

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    1. e nesse vai-vem por um mundo que tantas vezes não está senão dentro de cada um de nós, a difícil arte de saber vidas que jamais conheceremos completamente...

      beijo, aninha!

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  3. Cheguei para comentar seu comentário no Roxo, essa poesia que você deixa, como rastro, por onde passa:" e quanto mais o rosto se define, menos sabemos de si, esse cometa fulgurante com rasto de sangue a estilhaçar sonhos e demência na alvura impossível do lençol..."...mas me assombro com que aqui encontro!!!! De uma beleza não adjetivável. Escândalo!!! <3

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    1. e nesse caminho de nuvens e rasto vazio, de repente ocorre-me esta obra-prima de hugo mãe:

      "um pássaro pergunta-me se
      existe céu para saber se
      lhe responderei ou se
      deve cair"

      arrepios e beijos, taninha!

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  4. Ah nossa!!!...os posts anteriores são tão escandalosamente poéticos quanto. ando ausente e aproveitei para ler os dois anteriores. Volto para ler mais.
    Beijos, Jorginho.

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    1. tua casa, taninha; senta-te, serve-te de um trago de vinho do douro e deixa que as palavras sejam verbo e silêncio...

      beijo!

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  5. gosto muito da tua prosa poética
    gosto das imagens
    gosto de quando escreves poesia
    as tuas palavras dançam, escorrem sentires
    por vezes são fado
    outras vezes tangos
    outras tantas apenas hip hop

    beijo amigo

    :)

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    1. as palavras são feitiços, verdade, querida amiga? e a imagem musical que compões a partir delas é magnífica e deixa-me profundamente sensibilizado; um muito obrigado.

      beijo grande!

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  6. As cicatrizes estão no presente e trazem a ele sua origem, que ficou no passado. Os vazios estão no presente e o que nos foi tirado ficou no passado. O que não fomos capazes de vencer, nos caminhos do amor, permanecem em nossa bagagem de dor. Você é brilhante, em fotos e em palavras. Bjs.

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    1. pode a cicatriz até doer, mas não sangra... como a pele, tudo o que em nós respira se renova, pula e avança.

      um beijo grande, amiga de há já tanto tempo e de palavra(s)!

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  7. esse texto é de uma beleza ainda não existida. uma coisa que deixa a gente mole e com vontade de habitar, para sempre, essas palavras.
    Meu amigo,você é foda!

    bjs Quintanares

    p.s. as imagens seguem perseguindo-nos. um luxo!

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    1. as palavras desmoronam e dissipam apontando ao centro e a todas as distâncias; quantas bocas lhes adivinham o sabor das substâncias noturnas? - e há tanto ainda por acontecer ao homem e aos seus horizontes demasiados...

      beijos quintanares, ira-maior!

      p.s. esta foto foi captada no mercado do bolhão, no centro da cidade do porto, um desses lugares onde a alma do povo ainda respira...

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  8. maravilha Jorge, maravilha


    grande abraço

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    1. saudades de mil e um poemas, caro amigo; sempre um privilégio ter-te por cá.

      um abraço!

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  9. Jorge, falar de amor é algo complexo, personal e, ao mesmo tempo, fácil, pois cada um de nós temos nossas experiências pessoais. Lindo texto, e esta banda, a Einstürzende Neubauten, escutava nos anos 80, com o tempo, deixei de escutar, mas boa lembrança.

    Abração pra ti.

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    1. o homem, o tempo e os afetos num triângulo de vértices escondidos e de mapas por decifrar.
      einstürzendn neubaunten é uma daquelas bandas a que regresso sempre, paulo :)

      um abração!

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  10. Colher-se em vestígios no fim dessa tempestade... perfeito texto.

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  11. Cicatrizar silêncios: irreversível marcha da vida.
    Tua poesia é uma viagem em direção a outro tempo, outro lugar. Sempre!

    Abração, Jorge!

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  12. e, tudo aquilo que deixamos cair no silêncio ...em sepulcral mutismo ficará mas, não esquecido...
    Beijinho meu, querido amigo-poeta-fotógrafo!

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