sexta-feira, 16 de maio de 2014

os livros e os olhos: cântico para clamores e ventres raspados


fotografia de jorge pimenta


é lenta a revoada de páginas,
dois gomos de tangerina
e um leve fio a escorrer
pelos dedos,
aço, dizes tu;
nuvens, sei-o eu;
mas entre um e outro
toda a espessura das coisas
já gasta em saliva
com que percorres mundos de papel
que nos cabem,
sem míngua ou excesso,
em cada milímetro do corpo

são páginas
na gravidez do sal,
são palavras e espantos
de frio,
manhãs cor de anis,
numa desordem que toca
todas as coisas
por cima do tempo
por debaixo do vento,
nesse lugar secreto onde
tudo se ganha
e quase tudo se perde

a pouco e pouco,
chegado o derradeiro capítulo da viagem,
boca desatada sobre a exclamação máxima
do mundo:
são deuses de corpo nu
entoando a marcha interminável dos corpos
nessa felicidade de tinta
com que escrevemos os dias lentos
que julgávamos presos à engrenagem secreta
do fim da morte

mas agora é o instante,
a derradeira frase, e
já de olhos abertos e mãos sobre a paisagem,
o manto branco é tudo o que dissipas
e nada mais alcanças
senão a chuva frenética das sombras
aninhada sobre espelhos
num ocaso de flores vazias
infinitamente encharcadas,
sarcasticamente queimadas

e a história repete-se...


15 comentários:

  1. o caos e a desordem dos corpos na limpidez do poema

    a foto faz jus ao poema

    belíssimo

    :)

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  2. restam-nos as palavras com que enganar retinas neste planeta de quartzo onde caos e ordem são apenas circunstâncias menores.

    beijinho, piedade!

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  3. Um dia um certo dia, talvez já não se possa,
    nesta vida, recomeçar.
    Não deixemos que o tempo passe e,
    com ele, a ocasião de recomeçar
    um dia que podemos encher de felicidade.
    Recomeçar de um ponto de um lugar.
    Recomeçar com um gesto, com uma palavra,
    com um abraço
    O sucesso nessa vida depende de nós ,
    mais acima de tudo de Deus.
    A você um abençoado final de semana.
    Beijos e meu eterno carinho.
    Evanir..

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  4. Sim, Jorge
    Entre todos nós , poetas, a espessura das coisas e sua circularidade.
    Lindo, comovente, surpreendente.
    Agradecida pela sua reciprocidade.
    Beijo.

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    1. e nós, nómadas nesse caminho espesso a perder de vista a memória...

      beijo, andrea!

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  5. Águas, águas...sinto-as escorrer entre os teus versos. Mas são águas que queimam. Águas ardentes. Qual o teu signo, Jorginho? O poema é um escândalo, a engrenagem secreta do fim da morte é uma imagem enigmática e instigante.

    Beijos, querido!

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    1. taninha,
      tenho como ilustração para esta imagem da engrenagem secreta do fim da morte um dos locais mais apaziguadores e instigadores com que pude fisicamente contactar; uma galeria ao que já não, espaço encimado por uma claraboia a toda a extensão da estrutura, num beijo silencioso de luz. porque as águas de que falas no poema são as da saliva com que deslocamos as páginas de um livro (o livro do amor) optei por uma outra, a que aqui exibo. noutro instante trarei a tal de que te falo mas que, em todo o caso, tenho já publicada num site de fotografia: http://olhares.sapo.pt/a-engrenagem-secreta-do-fim-do-tempo-foto5970488.html#

      um beijinho grande!

      p.s. em resposta à questão que encerra o teu comentário: virgem/balança, ali mesmo entre um e outro, longe da água, mas suficientemente líquido para a sentir.

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  6. A chuva

    a eternidade
    em pingos
    de letras

    pelas mãos
    e boca
    e pelos
    olhos
    escorre

    só depois
    desta morte
    perceberás

    era
    teu sangue
    que te fugia

    (Joelma B.)

    e tu sempre me ofertando passeios, meu amigo das imagens pulsantes!

    Beijos!

    p.s: tua fotografia vai junto com o poeminha pro Transfigurações, tá!?

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    1. e a vida a dissipar-se na vertigem da palavra, um quase-poema, hino ao inefável e a esse sangue corrompido na viagem do tempo, algures entre a fénix e o verme, o touro e a borboleta. por vezes, escorre-se-me pelas mãos uma pequena morte de irrecusável veneno...

      beijinho, jô!

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  7. Tudo cabe nessas páginas que olhos/corpos ávidos devoram. Ganha-se mais do que se perde nessa chamada desordem, apenas circunstancial. Tudo lindo, a foto, a música e, sobretudo, seus versos. Bjs.

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    1. há páginas de escrita interminável, como infinitos são os dedos que lhe conferem a eternidade.

      beijinho, marilene; sempre tão especial a tua presença e a gentileza das tuas palavras!

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  8. "boca desatada sobre a exclamação máxima
    do mundo:"

    Um poema magnífico, que nos prende no virar de cada "página".
    Chegamos ao fim sentindo o recomeço...
    Gostei de o ler embalada pela música, depois de ter gravado na retina a excelente imagem que o acompanha.

    Já o disse muitas vezes: é um prazer entrar aqui.

    Beijinhos :)

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    1. somos essa massa quantas vezes indefinida em movimento circular, adivinhando portas por abrir em cada uma das que se fecham atrás do movimento desconcertado do corpo...

      um beijo meu, sónia! tão bom ter-te aqui!

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  9. O caos e harmonia juntam-se e nesse mar de opostos ora calmo , ora revolto a palavra se insinua e, tudo o que julgava findo, renasce a cada instante...
    Tudo perfeito, sentido...sensibilidade do SER!
    Beijos mil!!!

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