sexta-feira, 15 de março de 2013

Melodia lenta para os dias no regaço da sombra


Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar.

Não é meia noite quem quer, António Lobo Antunes


fotografia de eurico portugal


Caem, diretas na sua mão, as bagas de marfim dessa planta sem nome que se conhece por trocar raízes com os pés. Nunca se perguntou se estava vivo, por saber que há respostas que moram não nas palavras que se inventam, mas nas sensações escorrentes, gota a gota, nos lábios, a obliquar para o canto da boca, sem aviso ou permissão, enrolando a língua em tons rubros e anis.
– já não tenho a vida toda – pensou – e os meus ouvidos reconhecem, agora, as melodias do frio que se dependuram nas varandas.
Sabe dos dias que segura com a firmeza dos dedos como sabe de tantos outros que, por serem maiores do que os bolsos, balançam, sem músculo ou gládio, na corda que abeira a calçada do esquecimento – livros e notas manuscritas conservando, ainda, a roupa em desalinho como um perfume atirado sobre a geografia do corpo; uns quantos discos que sabia de cor, a garrafa de vinho entornada e o cheiro vago que permanece depois; por fim, as paredes brancas, vazias, enquanto a porta batia, com estrondo, logo atrás dela (quanto de si se atirava para dentro do lenço?).
De todas as vezes, o mecanismo incompleto do silêncio na perfeita organização de uma quase morte. E o momento de reabrir os olhos e colher as bagas de marfim da tal planta que se conhece por trocar raízes com os pés:
– Em paisagens humanas, importa não envelhecer com medo nos olhos errados.

29 comentários:

  1. a quase morte:
    o silêncio:
    o tempo que vaza:
    a incompletude:
    oráculos nus
    recitam em vão



    grande abraço

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    1. e, ainda assim, mesmo que em voo rasante, temp(l)o-silêncio e passos trocados, há sempre um pouco que coisa nenhuma a agarrar-se ao tecido fino da pele... ilusão ou certeza?

      abraço, assis!

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  2. "Sabe dos dias que segura com a firmeza dos dedos como sabe de tantos outros que, por serem maiores do que os bolsos, balançam, sem músculo ou gládio, na corda que abeira a calçada do esquecimento..." Para ler e guardar, querido poeta, fotógrafo que me tem também encantado tanto!

    Beijos,

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    1. quantas vezes os dedos nos iludem, taninha? a força que neles não há senão na distância do que aproxima, do que a desafia e tenta. e as suas folhas, outrora verdes, acabam por seduzir as cinzas.

      beijinho!

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  3. euriquíssimo,
    eu ando cada vez mais encantado com o seu jeito de colocar o olho no buraquinho da máquina de fotografar.
    a intimidade do olho do fotógrafo com o olho da máquina é latente.
    ô, e eu gostei demais demais da sua participação no "Olhares". E acho que deveria divulgar aqui, ao final de cada post.
    e, claro, não poderia deixar de reverenciar este seu escrever fora do verso. há muito que estou para lhe dizer, que já conseguia antevê-lo com um pé na poesia e outro na prosa.
    assim, deste jeito.

    abração do
    roberto.

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    1. robertílimo,
      é cada vez mais uma paixão este olhar pelo buraquinho da objetiva, como dizes. ontem, por exemplo, no final do dia, a tua sobrinha margarida convenceu-me a um pequeno passeio por esposende, cidadezinha costeira onde os matizes cinza do céu (tipo rumble fish :)) se mesclam com os da água. levei comigo a câmara e acabei por fazer um par de registos que me deixaram com água na boca para a etapa seguinte: a edição. um destes anos tenho de experimentar voos um pouco mais arrojados, junto de terras, rostos e formas de sentir diferentes.
      quanto à prosa... basta entender (ou pensar que se entende :)) um pouco da vida, verdade?

      um abracílimo, desejando que um maio se faça brevemente presente no calendário, qualquer que o mês seja.

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    2. você conhece os meus "pontos fracos"....
      e são tantos... Rumble Fish???
      rs...
      a prosa é mais fácil de confeccionar, do que o verso. isto eu atesto e dou fé.

      quando você vier me visitar aqui nos EUA, vou te levar nuns lugares muito legais para você fotografar. palavra de escoteiro!

      abração do
      r.

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    3. robertílimo,
      o efeito rumble fish partiu de ti: foi num comentário teu a propósito de uma fotografia aqui no orvalho que o associei a viagem nas nuvens; ainda que tenha visto o filme um par de vezes, tive de recuperar aquele início para, por fim, perceber a associação :)
      quanto a fotografar nos states: melhor do que peregrinar os lugares turísticos, só mesmo internar-me pelos mundos que escapam a quem os não conhece. e como eu gosto disso! no ano passado, quando estive em londres com a família, aproveitei uma tarde de programa tussaud's para fugir e, de câmara na mão, captar o que de outro modo se me fazia impossível - battersea power station (recordas-te da capa de animals, dos pink floyd?), estações de comboios, mercados, rostos afogueados na vertigem da vida que não espera, um detalhe insignificante, outro com significado. é disso que eu gosto, mesmo. e, olha que eu vou, sim, eu vou!

      abracílimo!

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    4. sim, me lembro da capa do álbum. e vi a foto da capa que você fez, euriquíssimo.
      e foi uma viagem (minha) dentro da sua... a lembrança de porres homéricas e alumbramentos vindos de outras fontes...rs
      aqui em newark tem fábricas antigas, belíssimas em sua decadência, loucas por um olhar curioso de um bom fotógrafo.
      era uma cidade muito bonita, tão bonita, que billie holiday, vinda do sul, parou por aqui achando que havia chegado a nova york (é a derradeira estação, pra quem vem de baixo no mapa, antes de nova york)... perambulou por aqui durante uma semana, até ser informada do engano...
      acabaria purgando no bronx e encantando o mundo.
      quando você vier aqui, fotograremos torres lindas e eu lhe levarei à cova onde está enterrado allen ginsberg, o poeta beatnik.

      abração,
      r.

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    5. robertílimo,
      a ideia de ir aos states não me seduz apenas pelo muito que certamente este olho saberá verter em fotografias, senão boas, pelo menos, suas, porque filtradas pela própria retina; seduz-me, sobretudo, pelo reencontro contigo, num qualquer bar onde haja uma d. helena, boa bebida e ambiente acolhedor, seja em inglês, em polaco ou na língua que o acaso queira escolher. quanto à boa conversa, essa fica por nossa conta, seguramente.
      começo a juntar uns cobres para tornar verdade o que há muito o sonho alimenta.

      abraço, meu tão primeiro amigo!

      p.s. essa estória billie holiday é, no mínimo, rocambolesca. foi mesmo assim? é bom saber destas coisas antecipadamente para ver se, quando um dia me seja possível fazer presente, tenha alguma noção acerca de qual o ponto de paragem e de saída.
      venham daí essas torres lindas e o memorial a ginsberg - arrepia-me só a ideia de um reencontro com os lugares do autor do imortal "the howl". e kerouac, acaso também ele está, de alguma forma, ligado a nova-iorque?.

      abracílimo renovado!

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  4. Lembrou-me de Al Berto: "um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite / os dias lentíssimos... sem ninguém".

    Que bonito texto, Eurico.
    Beijo.

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    1. e por falar de al berto:

      um dia houve
      que nunca mais avistei cidades crepusculares
      e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
      inclino-me de novo para o pano deste século
      recomeço a bordar ou a dormir
      tanto faz
      sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

      arrepia saber que há quem escreva assim, verdade, larinha?

      beijo!

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    2. Sim, tenho de cor esse poema do Al Berto, meu preferido dele, mexe demais comigo.

      E vc também é desses que arrepia. Só este seu texto eu li umas 6 vezes, rs.

      Beijo grande!

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  5. Para ler e guardar, como diz a Tania... e calar para fora, para poder ouvir o que é dito por dentro!

    imagem tão linda quanto me é melancólica!!

    beijo, poeta amigo!! Muito bom te ler!

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    1. calar para fora para ouvir por dentro - o centro da distância. tão bonito, isso, jô!

      beijo grande!

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  6. de tudo que é poesia, e tão tua, e sempre minha, nunca deixo de desejar a prosa, em bocejo, que leva-me ao balanço da rede onde suspiro um pouco mais de tempo.
    vc é incrível e pt.
    bj, amigo para todas as paisagens humanas

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  7. esse balanço a resgatar o tempo, sobretudo em ritmo lento, como uma melodia, à espera do que é... por o não ser.

    beijinho, amiga das minhas paisagens humanas!

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  8. Adorei esta prosa poética e a foto também está genial: o caminho que parece afunilar e chegar ao fim.
    Como a vida nos seus dias sombrios...
    Beijinho, poeta .

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    1. todo o lugar é inspirador, sandra. fui parar a canfranc quase que por acaso, mas gostaria de o voltar a fazer. é que, como dizes, a vida reconhece os seus passos sombrios; e isso sente-se por lá de uma forma subtil, mas inequívoca.

      beijinho!

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  9. querido amigo, perdi-me de encanto nos horizontes da tua prosa.
    a fotografia, mágica, como uma caixinha de música com melodia prevendo um feitiço movimento entre o arvoredo.

    beijinho grande!

    p.s. estou a ler, "Não é meia noite quem quer" :-)
    p.s.1. ando com dificuldade em postar fotografias/imagens acabam por ficar tão pequenas e descentralizadas, não sei a razão, nem sei resolver... daquelas coisas sem grande importância mas que chateiam :-)

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    1. andy,
      tenho estado a ler justamente a última preciosidade de lobo antunes. faço-o de forma sincopada, não apenas para ajustar a leitura ao ritmo dos dias, mas também, e sobretudo, para lhe sentir o gosto, assim lentamente, como a um fruto de sumo intenso e verdadeiro. e como me tem surpreendido!
      pois, este blogger por vezes perde o juízo e passa a funcionar ao contrário. eu, por exemplo, deixei de conseguir postar vídeos. mas, porquê, se cumpro as etapas que sempre segui, até à semana passada com sucesso? enfim...

      beijinho, querida amiga!

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  10. por alguma razão foste luz, porque saí daqui e consegui editar as fotografias e centralizá-las! há coisas... :-))

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    1. ora, aí está o instante certo de voltar a tentar carregar os vídeos :)

      beijinho!

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    2. tenta uma coisa, tenta pelo HTML, ou seja, em vez de estares em modo "redigir", tenta incorporá-los no modo "html", aquela opção no canto superior esquerdo, quando estamos a compor a mensagem, digamos assim. não tenho jeito para explicar mas talvez ajude de alguma forma.

      beijos grandes, amigo!

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    3. acabo de fazer uma nova experiência, andy, e... deu no mesmo - não resultou. não sei o que me está a falhar, mas reconheço que a minha destreza técnica nestas lidas tecnológica nunca foi das melhores :)

      beijinho e obrigado!

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  11. eu não conheço essa frase??

    ah, talvez envelhecer não seja mau desde que com os olhos certos
    procuremos então a visão certa

    beijinho

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    1. conheces a frase do incipit, o autor e o livro muito bem, mesmo. aliás, esta frase assume uma importância tal no livro que se repete em diferentes lugares, renovando os seus sentidos e acrescentando-lhes novas significações. muito bom!

      é nos olhos e até onde/o quê por eles chegamos que tanto de nós faz sentido. é curioso que, à medida que se envelhece, cresce a tendência para se ver pior mas também para se acertar mais :)

      beijos, laurinha!

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  12. Poderosa demais essa prosa, caro Eurico,

    Sonho de curva escura
    é encontrar luz
    no fim de nós.

    Beijos!

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  13. sempre esse jogo de luz e sombra que nos define, verdade, aninha?

    beijos!

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