sexta-feira, 9 de novembro de 2012

as duas faces do poema


o poema não é bom
a mão tem vertigens
não arrisca.

Ana Salomé, Ode Simples

fotografia de eurico portugal
cabanelas - antiga fábrica de cerâmica do minho


é ao lado esquerdo do poema
que se agarra o olhar.
o labirinto de palavras revela paisagens
corpos esquivos
ou até a ciência das mãos
com que se a-prende o amor.

a noite impressa na página
esconde a embriaguez
de uma respiração lenta,
como a de homens a fugir das nuvens
que já não sabem chover.

tosse
tontura
e o corpo a abandonar-se em cada palavra
como se os frutos nascessem podres
e acabassem antes do suco na boca.

um cigarro interroga-me:
terás ainda flores vivas nos lábios?
com que cor se pinta o amor?
é meu companheiro
e pelo fumo ergo-me acima de templos
desvendando rostos que abandonei
à beira-ser.
hoje, porém, por cada ilha que perco
menos a resposta se faz clara
nos dedos a enrolar a melancolia do filtro
e o frio húmido do teu olhar.

tosse
gola do casaco chegada ao pescoço
ponta do cigarro no chão
biqueira da bota a rodopiar na cinza

sei que podia ter sido muito mais
do que o poema me segreda
mas até já o fumo se atrasa na convulsão do sangue.

ainda há o lado direito do poema – penso.
é lá que a luz viaja à velocidade do desejo,
volteia no ar com a pele eriçada
e os dentes cada vez mais brancos
mas nem assim chega para acender túneis
ou apaziguar relâmpagos.

sei onde a fuligem desenha os corpos
e em que poema inteiro um dia morremos
mas saberei voltar a esconder ao monólogo
a chave da solidão?


Nick Drake, Place to Be

7 comentários:

  1. Ah, é disso que eu sentia falta...Dessa vertigem que tem boca e fala...dessa sensação do impossível dito...dessa entrega às palavras sem medo... Que bom te ler, Eurico, não imaginas o quanto!

    Beijos,

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  2. das faces do poeta, um dia me perdi e foi o que me aconteceu de melhor, ainda mais, quando penso no que há pela frente, nesse abandono de palavras que me acompanhara até o fim do medo, se é que há fim.Das faces do poema, somente sei o quanto as necessito na pele.
    bj de contentamento

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  3. Caro Eurico,
    poema muito belo!

    Remeteu-me a quiromancia, onde, a grosso modo, na mão em que escrevemos estão as linhas do presente, a tendência do presente conforme o estamos conduzindo; e na outra mão, as tendências do futuro.
    Fiquei pensando na questão desses opostos, que bem podem ser complementos (pois uma coisa leva à outra): materialização/saudades, direita/esquerda, negativo/positivo, enfim. O que escrevemos hoje, com a própria escrita, define o hoje, mas interfere no amanhã.

    As linhas da vida que estão duplas na mão que se escreve, podem ser firmes ou totalmente cortadas na mão em que não se escreve, ainda aqui supondo que o hoje também possa nos dar duas faces amanhã. (a controlável e a incontrolável/ a possível e a impossível), o que nos abre as probabilidades do círculo: materialização/saudades/materialização. (ou inserir saudades novamente - e aqui lembrei-me do teu conto anterior. E quantas vidas temos para morrer, Eurico? - para cada morte, uma nova possibilidade em materialização/saudades)

    E a Poesia a emoldurar tudo isso, pois ela é o espaço entre o instante e o vagar, anterior ao vagar, pois estímulo-vida para entrarmos em alto-mar numa nau perdida, sem bússola, mas sabendo o que se quer, acima de tudo: ser feliz!

    Beijos e agradeço a partilha!

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  4. É como se este poema não tivesse lados, nem faces, mas a marca da tua identidade, Eurico; nem dentro, nem fora, nem frente - o verso: disposição.
    Há muitos caminhos para um oorvalhodofimdomedo, não é verdade? Respiremos com o coração,
    um abração pra ti

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  5. são as arestas das emoções, os lugares e recantos, as dualidades, as formas e cores de nuvens dançantes a suavizarem os nossos tantos lados...

    um enorme beijinho-sorriso! :-)

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  6. do lado esquerdo do poema sangra um coração de poeta.
    sangra!

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  7. o que esperar senão o devir?
    o que ouvir senão o peito?

    beijo, poeta Eurico!

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