sexta-feira, 2 de maio de 2014

urban-idades


I. são assim as cidades

são assim as cidades
telhados do tamanho da idade
a erguer-se como pombos
com sílabas nas asas e
nomes que não envelhecem no peito.
são sons, ruído, vertigem e velocidade
mas dentro do teu olhar sonâmbulo
apenas a embriaguez de um segundo
a queimar-nos as mãos,
esse instante que passa mais lentamente
do que todo o tempo.


fotografia de jorge pimenta



II. Escalada e abismo

sei as escadas do corpo
em que a luz passa de boca em boca,
sei de escadas plenas
a ascender e a mergulhar
nos lugares recônditos do silêncio:
um nome, um rosto, um talvez recolhimento
na ressuscitação do pó.

sei de escadas...
lá onde tudo é outra coisa.


fotografia de jorge pimenta



III. requiem para uma cidade adormecida

já não me engana
a cidade
e o vício torcido na pele,
toda ela hábitos de palavras e
esconderijos de silêncio

às vezes atiro-lhe as mãos,
outras a minha loucura
e ela,

sempre insatisfeita,
abre a boca e engole-me na voragem
de serpente lasciva
a sibilar desejos
e algum do meu frio pela voz

no interior da idade,
a pedra oculta-se camaleónica
e, quando paro para serenar,
eis que toda ela se ilumina
mas ninguém respira já no interior das casas

já não me engana a cidade e
das estrelas nada mais espero do que palavras
de sentido lascado.


fotografia de jorge pimenta



24 comentários:

  1. "...das estrelas nada mais espero do que palavras
    de sentido lascado."
    é isto, é isto mesmo... mas espera! há sempre uma estrela que nos fala mais alto, não a quero perder de vista! só os tolos a vêem mas não interessa...

    beijinho, querido amigo!

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    1. os tolos, ou seja, os lúcidos - que não perderam a esperança -, querida amiga. e a estrela reverberará sempre, quanto mais não seja nas pupilas daqueles que não desistem de procurar...

      beijinho com saudades!

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  2. ser urbano é um vício dos meus olhos.

    e essas imagens que fazem ruídos bem diante do meu olhar em viagem... ufa!

    mais beijos

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    1. a cidade, essa figura maior, quantas vezes geografia, geometria e pólvora a incendiar os olhos bem no mapa da viagem? - e é lá, no seu apelo magnético, no verdadeiro cio de pedra, que exultamos e nos contorcemos... ainda assim somos tanto e tantas coisas...

      um beijo grande, querida amiga-poeta!

      p.s. ainda pelas ramblas? :)

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  3. cidades grandes
    podem sem solidões grandes
    as fotos e as palavras (tuas) são grandes
    gostei muito!

    :)

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    1. as cidades e tanto do seu vazio que preenchem cinicamente com o que não nos sobra...

      um beijinho, piedade!

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  4. Lindos textos, que se unem em uma só mensagem. Sou citadino, gosto de metrópoles, de aglomerações, e me assusto com esse misto de sentimentos em profusão no qual se vive nas cidades, alegria, tristeza, companhia e solidão, segurança e violência, enfim, um turbilhão de coisas ao mesmo tempo. Belo texto, e belas fotos também. Parabéns, inspirado como nunca.

    Abração Jorge.

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    1. cidade, o manto que todos depomos por cima da pele, numa necessidade de afago. numa incerteza meteorológica de tanto termos frio como, no instante seguinte, escaldarmos imersos no seu insuportável calor...

      um abraço, paulo!

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  5. Sim, são assim as cidades.

    Gostei muito

    Bjs

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    1. as cidades e o espelho... eis os nossos olhos em cada veio de pedra, em cada segmento de betão, em cada bloco de cimento a enregelar os ossos e a alucinar a memória...

      beijinho, rita!

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  6. Como sempre, um prazer enorme ler-te. E sentir-te através das imagens, Jorge.

    Confesso que de há uns anos para cá, associo a palavra "cidade" à cidade onde agora me encontro ( apesar de ter uma outra, que é "a menina dos meus olhos"). Há sempre um lugar que nos marca, posso dizer, que esta cidade me marcará por toda a vida. Foi aqui que ganhei uma nova perspectiva, sobre os lugares e as pessoas que os habitam. O primeiro que notei, foi, quão maior é o lugar, mais depressa se dispersa a ternura das vozes, que mal se ouvem...

    As imagens são fantásticas!
    Boa semana. Beijinhos.

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    1. as cidades, aqui metonímias de todos os lugares do eu, acabam por coincidir com o tão mais que nos escapa do que com aquilo que conseguimos tocar... em certo sentido, são uma aproximação à imagem do sonho que tantas vezes se não cumpre mas que virtualmente acaba por ser, ele mesmo, a porta para o que em nós se completa absoluta e definitivamente nele, no sonho.

      beijinho, sónia, cuja presença tanto e tanto enriquece este outro lugar de mim e que agradeço com todo o carinho!

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  7. Cidades grandes e suas imensas solidões. Como figura de linguagem a interpretar nossos sonhos e desejos mais recônditos (...já disse Lacan).
    Independente de lugar, as vidas se equivalem, sabemos bem disso.
    Já de estrelas... De estrelas nenhum poeta pode prescindir.

    Sempre me surpreendes, poeta. Um voo, sempre nos teus poemas!
    Beijinho, Jorge!

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    1. cidades imensas a habitar a pequenez das palavras onde o centro é cada um dos seus silêncios... mesmo que as estrelas, esse galho de centelhas, nos transviem os passos com o seu caminhar ilusório.

      um beijinho, querida marlene. obrigado pelo carinho da presença e palavras!

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  8. às vezes atiro-lhe as mãos,
    outras a minha loucura
    e ela,

    sempre insatisfeita,
    abre a boca e engole-me na voragem
    de serpente lasciva
    a sibilar desejos
    e algum do meu frio pela voz.............................Te ler! Estou tentando sair do casulo e voltar aos blogues. Isso aqui é um estímulo enorme. Porque o poeta é enorme. Beijos, querido.

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    1. a tua presença é sentido primeiro para os meus versos. e como é necessário ser-se seiva e caule...

      beijos, taninha!

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  9. Oi Jorge,

    conheci o "Orvalho" em janeiro, desde quando o acompanho. A cidade que me remete é antiga e interior e reparo que esse é um poema que responde ...
    Venho reconhecer a imensa poesia e a harmonia das imagens que aqui encontro, aguardando a sua visita.

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    1. andrea,
      um grato reencontro, o nosso, verdadeira estrela voltaica a incendiar caminhos.

      beijinho!

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  10. Cidades... crescimento continuo e desordenado. Nosso eu... mudanças também sem paradas. É a vida que segue e que desperta diferentes sensações a cada olhar, eis que, num instante, a visão que temos já mudou também.
    Suas imagens estão encantadas, Jorge. Belíssimas. Bjs.

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    1. querida marilene,
      as cidades e a sua expressão camaleónica são o betão que tantas vezes se faz de carne, ousadia e fracasso, antes do estertor sombrio desses nossos lugares onde tanto cega...

      beijinho!

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  11. Jorge,
    a cidade-eu, a cidade-tu, a cidade-nós, a cidade-cada-um, a cidade-todos.
    A cidade, como uma persona ao nosso contorno; por vezes, outra persona dentro de nós. Tudo o que já estava construído antes de termos sido, outro tanto a construir, enquanto ainda somos. O que edificamos, e mesmo nossas ruínas ou prédios em implosão.
    Em toda essa complexidade 'urbana' e de urban-idades (de todos nossos tempos), ali estão, por vezes, minúsculas, as casas, as nossas casas, ninhos nos quais nos sentimos protegidos e na certeza de um teto com paredes, alicerce a nos acolher.
    São as casas as pessoas as quais sempre retornamos, em especial, também os cenários aos quais sempre retornamos, as músicas, os poemas, os filmes, os livros...
    Casas para retornamos, assim são nossas gentes, nossas cidade-eu, nossos atores; tudo o mais, entorno em si mesmo: plateia, coxia, palco... nesse espetáculo-metrópole.

    Por isso retorno :)

    Beijos!

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    1. aninha,
      há um músculo encharcado de vida a saltar, com violência e fulgor, em cada cidade do corpo, um músculo deitado sobre o movimento, manhã a romper os dedos, nomes e rostos tocados pelo tempo numa mesa de café esquecida, cidade de boca pequena e sonhos menstruados a animar musas e abismos de carne, de osso, de sangue e des-ilusão, sempre eternos entre a cabeça e o coração.
      por instantes, todos desaparecem. ao fundo, um arrepio chega junto com o som: o roncar de um motor; depois, o chiar da borracha na abordagem à curva a luz que se extingue quando a estrada que se perde no travão que perdeu o pé... enquanto isso, cada olhar é apenas fósforo riscado nas linhas do fim do tempo.

      e há tanto que nos cega na cidade, a nós-gente-cidade.

      beijos em tons de orvalho!

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  12. Meu querido Poeta

    Infelizmente a cidade grande não tem alma nem coração...apenas um silencioso murmúrio.
    Como sempre não tenho palavras para o que apenas se sente.


    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

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  13. Chego aqui, após longa ausência e remeto-me ao silêncio, porque na "Cidade" há sempre um silêncio ensurdecedor...
    Não há palavras, sente-se , é um sentir genuíno e autêntico, que se basta , se sacia nesse renovado/renovável ...

    Beijinho terno e saudoso!

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