terça-feira, 27 de agosto de 2013

dois poemas para ímpetos e travessias



Ama como a estrada começa

Mário Cesariny



I. gravidade

contei vésperas
amei ausências
jurei tantos mistérios
simples
neste estímulo de intentos
que me adivinho leve
a pairar sobre letras e cata-ventos
com que desfolhaste a terra:

hoje
esqueço-me de mim
no itinerário dos dias inteiros
ou não fosse o verbo o maior dos teus
silêncios.


fotografia de jorge pimenta



II. poema de fim de dia e seus quebrantos

escrevo versos como quem cavalga
nomes
como quem açoita
destinos:

afinal
é sempre tão húmida
a estação da saliva
com que velejas metáforas
e tantos impossíveis
meus.


fotografia de jorge pimenta



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

três poemas e algumas fulgurações


Tenho as mãos vazias de ti
neste hálito que ainda te respira

Ademar Ferreira dos Santos, in Descansando do Futuro


fotografia de jorge pimenta


I. caderno de viagem

capa escura
algumas folhas arrancadas e
umas tantas rasuras
dentes brancos pousados na
idade
duas glicínias
e a apoplexia da voz,
um gato,
sobretudo um gato, pardo e sonolento:

onde fica esse lugar a que apenas chegamos
quando se faz demasiado tarde?



II. um passo a menos

poema:
mão trémula
taquicardia
suores frios
e refulgência ocular

[esquecemo-nos tantas vezes
da vida]


III. variações em torno do amor de um poeta

submeteu-se a algo
insidiosamente
maior do que a chuva e o frio
em dislexia sobre a voz:
céu do peito atado à carne e ao dizer
língua entaramelada
e tantos outros coágulos de sombra...

alguma vez terá ele estado
tão só?

[e a saliva a escorrer vagarosamente
pelas frestas do passeio
ali
bem dentro do teu nome].


fotografia de jorge pimenta


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

um trago de whisky e duas gotas de silêncio sobre a verdade do homem que tarda


Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.

Pablo Picasso sobre Guernica


fotografia de jorge pimenta
Museo Reina Sofia, Madrid


são elas,
as lâminas descaídas
superlativas
sobre cabeças em lava humana:

logo
a poeira do corpo
se desprende em agitação
sem conhecer vogais ou consoantes,
apenas gritos
e toda a significação
sobre os sorrisos em desintegração
urgente:

a carne desfeita em soluços
e nós
vazios dentro dela
enquanto o silêncio mascara
cada lasca do rosto
e outras tantas confissões
adormecidas:

até quando nos
lembraremos?


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

papel de parede

fotografia de jorge pimenta

I.
não me deixes só em cada um dos meus morreres.


II.
o universo e todas as coisas:
o erro grosseiro de pensar em vez de sentir.


III.
o inverno nas minhas próprias vozes:
sofro desse frio que não pertence
nem à vida nem à morte.


IV.
esperava a vertigem das mãos
a percorrer-nos por dentro
mas
o mar acabou por desviar-nos o
peito
antes do rosto adormecer no
silêncio.

conseguirei gritar
para o lado onde se inclina o vento?


V.
minto para não saber a verdade:
eis o peso trágico de ter de dizer.

fotografia de jorge pimenta