segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

brinde para urgências de datas impossíveis

"bebo mais, até que a solidão se perde na espessura turva do vinho. às vezes morre-se tanto, e tão cedo!"
Al Berto, Roulottes da Noite de Lisboa

fotografia de eurico portugal


toda a memória recorta imagens fixas
de um tempo em que ganhámos
terra firme

as bocas falam
o calendário ruge mas
apenas desejo os doze pequenos silêncios
que escuto quase sem ferir o olhar
– pergunto-te de onde vimos
tu e eu
poemas sem medo
a acorrentar ruas inquietas
ao corpo?

hoje é o dia
de nos fixarmos no ponto
que grita pelos mortos
que desenterra os vivos
o dia dos futuros possíveis
e dos livros que nunca escreveremos
– porque o tempo que nos sustinha o olhar
lançou a pele à terra
e todas as estrelas apodreceram
no bolor da sua voz:
nenhuma linha é perfeita
à superfície da noite e da loucura

hoje é o dia de recordar
hoje é o dia de esquecer
o dia
de amar rosas com os dentes
de dizer poesia
de beber bocas e amansar línguas
hoje é o dia
de esbanjar desejos que daqui a um ano
reinventaremos
[apenas palavras
sem antecedente
num abrir e fechar de pálpebras]

toda a matéria é mentira por isso
hoje é o dia
de estender os dedos
escarnecer da distância
e tocar a ponta extrema da estrela:

a morte não nos vencerá

esta noite.

 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

noite de consoada: a noite-menina e os labirintos dos homens

alguma vez precisaremos de mentiras
se acreditarmos nas coisas simples?
Jorge Pimenta


fotografia de eurico portugal

a noite segura todas as presenças
às cavalitas do tempo
com que pássaros debicam as pálpebras
e nos fazem chover.

só ali
sob o teto de estrelas
habitamos sorrisos e oferecemos as mãos
enquanto o balanço das promessas
arde na lareira do tempo.

eis a noite a inventar o calendário.
e fomos meninos
a escalar o sol em brincadeiras de açúcar
e fitas nos dedos
com que embrulhamos o coração.
e somos meninos
porque lá longe
e aqui tão perto
brincamos com os rostos silenciosos
que sustêm a memória,
os de ontem os de hoje os de sempre
enquanto deciframos mapas em que nos perdemos
e em que perdemos –
feitos de pele e lábios, uns,
pele e sangue, outros,
pele e gente, todos
– porque, com braços magros,
já não dizem mas tudo são
nesse silêncio intacto que se vê
para além dos olhos e de todo o corpo
para além das pétalas e da dor.

a noite é todas as noites,
noite feita para amar
e para o repetir com todas as palavras
noite quase gente
noite de dar nomes às flores e de saborear os frutos
noite impronunciável
noite-mesa noite-mãos noite-fogo
sobre a estrela que ilumina os caminhos.

e em todos os olhares-meninos
o tempo avança sem destino:
a noite é infinita
e todos os futuros são possíveis

à noite. sem dia seguinte.

 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

galeria - rostos de pedra

[fotografia de eurico portugal]

rostos pelos bancos da cidade
a fechar mundos.




[fotografia de eurico portugal]

quase em silêncio sabemos:
há sombras que passam por nós.



[fotografia de eurico portugal]

a coisa mais distante do horizonte – o tempo.



[fotografia de eurico portugal]

e ainda assim
escondido na tua ausência.






sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

versos para rostos e rastos de noite em levitação

Dos carros que passam, o único que talvez pudesse ter-me dado uma boleia
ia no sentido contrário ao meu.

Jack Kerouac, Big Sur

fotografia de eurico portugal

às vezes chegava tarde
carregado nos destroços do corpo

impossível apagar os vestígios
da noite
com que sujámos as mãos
porque as bocas depois do incêndio
erguem cicatrizes regadas
com os dias lentos de não-regresso

na memória desabitada
um beijo
breve, subtil, espetado na melancolia
de palavras abandonadas pela saliva
por tudo ser mentira varrida para debaixo
do tempo e das travessias:
roupas rasgadas
a ferocidade de orquídeas
e o rastilho do sexo a tatear pela chama
mas a cama, essa,
deitada numa carta
quase um rosto, um talvez rasto
invariavelmente anónima
sempre sem remetente

passei a chegar cedo
mas a noite continua a atravessar-me
os pulsos – então sei:
a vida e a morte pertencem-me
para esquecer o som agudo deste grito.

 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

poema da [in]existência sobre um encanto tardio


O castigo que escolhi para mim próprio é saber aquilo que aconteceu a seguir.

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos



fotografia de eurico portugal

passaste por mim de rompante
maldizendo
os que comem a terra e as suas larvas
os que têm relógio, tempo
e sabem de que matéria se faz a espera.
foi apenas por um instante que te detiveste à minha porta
por receares morrer aqui
[sim,
todo o corpo tem uma morte
mas nem todas são iguais]
e rejeitares ter
a vida já toda inscrita nas mãos.

eu sei,
tu és gato em rua deserta
não temente dos cães noturnos,
sem recear a luz bafienta sobre o granito
e até a tigela com as sobras da miséria te aquece o sorriso.
e passas,
passas sem um aceno, um bilhete, uma nota

e quanto àquele número de telefone:
extraviado nas azenhas do tempo
mas ainda a consumir
em fogo brando
os mesteres do olhar.

ao longe a cidade ressoa
e o canto volta as costas a tudo o que passa.
silêncio.
há um vazio nas esquinas onde perdura o teu perfume
ali mesmo
onde lavámos os nomes
e os incêndios agarrados aos corpos.
deito-me. levanto-me.
por vezes sangro e esqueço
e hoje sei tão pouco de ti
e ainda menos de mim.

o mais que adivinho já não cabe no poema.

 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Cinto/Sinto ou a homonímia do Ser?

... a morte, afinal, deve ser um alívio,
Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida.

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis

Fotografia de eurico portugal

O cinto ergue-se acima do medo injetando, em cada chibatada, o veneno a que chamava vida. Os gritos das duas mulheres rasgam o silêncio de uma noite que volta as costas àqueles que não sabem dormir, mas, sobretudo, àqueles que não podem dormir. Com o olhar vazio, fixo num ponto onde nem a poeira fazia morada, Maurício Caridade prossegue na sua romagem penitente: o corpo, rígido, acende a pólvora dos músculos em pêndulos cadenciados, como as rotinas que não desejamos mas se nos fazem inevitáveis; no estertor do combate, uma veia do pescoço entumece à passagem do ódio, atiçando os dentes e palavras curtas que cospe em ladainha não tanto pelo ódio à mulher e à filha que sofrem às suas mãos, mas antes por acreditar que na desintegração dos sorrisos estaria a penitência para o maior dos castigos que assiste ao ser humano: ser.
Foi sempre um homem de grande devoção, alguém para quem o corpo não servia nem para dentro dele se poder existir. Maior do que a sua fé em Deus, apenas o medo do demónio que, conforme lho desenharam na catequese, exibia esgar desafiador e cauda lasciva enquanto a língua bífida molhava todos os desejos, essa matéria demasiadamente humana, por isso proibida, tão falsa quanto a respiração das paredes ou os afetos das águas. Todo o seu percurso se fez em solidão muda, recalcando tudo o que apontasse à expressão dos sentidos. Não se compreende, ainda hoje, por que razão casou com Maria Ascensão, ainda menos como lhe fora possível conceber Amélia, a jovem de 16 anos que escondia incertezas sob a roupa. Por causa dele, Ascensão perdeu a inocência e os tons de açúcar com que qualquer rapariga esmaga a morte e idolatra os sonhos, vivendo agora agarrada a um casamento derramado sobre a loucura (como se ela pudesse ser mais ácida do que aquele colete de arame farpado que Maurício lhe vestia, a cada voo noturno, sobre a cama).
Terminado o ritual, o silêncio voltou, mesclado agora com o aroma doce do sangue e da desonra, numa recriação de tons que apenas o pesadelo conhece. Somente a respiração resignada de Ascensão e o soluçar surdo de Amélia atravessam a luz baça do quarto, orquestrados pelo tiquetaque de um relógio de parede que enfeitiça fantasmas no interior da linguagem. De bruços, imóveis sobre o chão, as duas mulheres reencontram a semiconsciência atirada desde a ponta do corpo até ao extremo da violência. Do outro lado das sombras, de novo a ladainha masculina a aveludar o espaço e o tempo, enquanto do alto do crucifixo um Deus inexpressivo parecia nada compreender.
De súbito, os olhos de Maurício rasgam-lhe a paz fervida. Diante de si, segurando uma faca de cozinha, Lúcifer, o demónio que tanto teme, ele mesmo, sem enviados ou intermediários, como se a raiz do mal só pudesse ser combatida pelo próprio mal. As mãos, pequenas e magras, nem parecem ser verdadeiras como nada na vida daquela família é. Enquanto o metal luzente volteia no ar, Maurício entorna o medo de uma só vez para se fixar no convés do tempo, no passado dos outros, dos que existiram e dos que inventou. Todos os rostos lavados pelo sangue e pela sua mão impiedosa passam diante de si com uma nitidez que nunca tiveram no momento em que os conhecera e, sem entender, as lágrimas começam a obliquar-lhe do rosto extinguindo-se antes de lhe chegarem ao peito – quantas coisas são mais do que parecem? Todos os rostos e agora mais um: o seu, rasgado pelo movimento seco, certeiro, de um único golpe. Os olhos anavalham agora as imagens, tornando-as pálidas e confusas como as derradeiras ondas a circundar as ilhas da existência. De certo tinha apenas que, na asfixia do destino, usar o mal é um modo de esquecer ou de não lembrar; de definitivo Maurício tinha agora somente a morte.
Estava de regresso o silêncio embalado no movimento esquecido do relógio de parede. A roupa que um dia Amélia trajara no Carnaval desprende-se lentamente do seu corpo caindo abandonada no chão do quarto, agora manchada num sangue que a torna ainda mais rubra. Nenhum olhar na nudez daquele pequeno universo feminino que se libertara do caos.