sexta-feira, 26 de julho de 2013

pedras da calçada da vida adentro [IV]



porque só à primeira metade do poema assistia o mistério da respiração

Herberto Helder, in Servidões



I. um poema e alguns suspiros em voz pesada para
nudez masculina  

é o poema,
um par de linhas apenas
para a página escavada
ao ritmo das mãos

é o poema,
masculino, severo, atento
às sombras e aos outonos
adormecidos sob a pele

é o poema,
a massa assimétrica de formas,
rosto feminino
a  sorrir linhas de algodão
enquanto o corpo espreita
em tons de açucena e mariposa
o contorno da boca com névoa nos lábios;
e nos dentes: a pedra que esmagou
dedos, letras e todo o desejo
de escrever

é o poema,
e tudo o que o alimenta:
ciclo de sangue a escorrer pelo
tubo da esferográfica
que se devora a si mesmo,
fundo, impossível, quase lunático
como cada linha do rosto escavada
pela memória da utopia
mais ainda da distopia

nem eu sei o que é...
poema ou linha de morte
sobre pulsos magros que ligam
o grito ao silêncio:

poema:

o milagre do homem à espera
do homem.

fotografia de eurico portugal



II. traço sobreposto para extinção do corpo e do tempo

a imagem corre a meu lado:
um ponto anónimo
veia indómita
apenas traço.

atiro a pergunta ao silêncio
e o dardo trespassa todo o
sangue
em sorriso brando
olhar em equilíbrio suspenso
perpendicular ao movimento do pêndulo que
tudo acende
tudo luz e explode
em sangue de gozo fino
sobre a artéria da eternidade.

a imagem corre a meu lado:
e eu que já não tenho corpo
para ganhar
o tempo.

fotografia de eurico portugal


16 comentários:

  1. o poema submetendo-se ao incabível!!

    beijo, meu amigo poeta das imagens pulsantes!

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    1. e mesmo sem forma, sem peso, ou matéria, o poema é na infinita certeza do dizer.

      beijinho, amiga-poeta da mais fina vertigem!

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  2. é ciclo de sangue a escorrer pelo
    tubo da esferográfica
    que se devora a si mesmo

    Amado poeta, êxtase sempre com as imagens poéticas que me impressionam sempre. Tenho desejado livros. Um livro de poemas teu é um sonho que guardo com esperança.
    Beijos, querido.

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    1. no dia em que tal se fizer possível, juntamos todos os amigos da/de palavra e celebramos, taninha: em braga, em terras de vera cruz ou num qualquer lugar que só nós sabemos habitar.
      a propósito, nosso beto (robertílimo, numa forma muito pessoal de o tratar) vai publicar o seu, em parceria, em setembro cá na minha braga; seria um excelente pretexto para uma reunião além-mar, verdade? :)

      beijos!

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  3. "...poema ou linha de morte
    sobre pulsos magros que ligam
    o grito ao silêncio:"

    amigo, encontro na tua escrita sempre um porto de abrigo para o que sinto e para o que nem sempre consigo explicar...
    sigur rós e as tuas palavras, pura emoção à flor da pele.

    beijinho grande!

    p.s. tanto que procuro servidões de herberto helder, mas já perdi a esperança, e aqui encontrei um sopro desse livro... :-)

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    1. a palavra a desafiar o silêncio por ela afora.

      beijinho, querida amiga!

      p.s. arranjei servidões na primeira semana da sua publicação; são assim os livros do herberto helder, edições únicas que acabam por ser duplamente raridades: pela excelência da poesia, por um lado, e pelo número reduzido de exemplares nas nossas mãos, por outro.

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  4. dois poemas para nos gastarmos em arroubos, que a alma soluça e a vida turva


    abraço

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    1. a poesia em perícia subcutânea, atenta a tudo o que define além-palavras.

      abraço, caro amigo-poeta!

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  5. I.

    poema,
    grito surdo que asfixia...
    que se solta em ferozes gemidos,
    dor e prazer...viver ...morrer, renascer...
    perpetuo silêncio em desesperado momento!
    poema,
    palavra audaz, transcende o Infinito,
    arrefece lava ardente, do Espirito,
    regresso ao mundo do mutismo e paz...

    II.

    " já não tenho corpo
    para ganhar
    o tempo."
    tudo olvidado, num obscuro esquecimento,
    resta a palavra para eternizar...

    Beijinho, querido amigo-poeta!

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    1. I.
      poema: o milagre do homem a preceder uns quantos aconteceres.

      II.
      de novo a palavra:
      "escrevo rescrevo
      e enfim reluzo e desmorro"

      herberto helder (mais um vez).

      beijinho, querida amiga-fotógrafa-poeta!

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  6. Jorgito, meu amigo doce e amado,

    Penso que cada homem traz em si um livro infinito de poemas

    No meu cotidiano, ao tocar cada olhar, cada frase ou palavra e cada mundo dessa diversidade humana, percebo os poemas ganhando vida indestrutível e são neles que minha alma habita

    Habito em cada palavra sua e meus poemas se agitam
    Bj, poeta imenso

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    1. ira,
      hoje despi a máscara: eurico morre acidentalmente na beira da estrada, pois nenhum tempo ou memória pode refazer o que se fez incompleto. aliás, há em "cada homem [...] um livro infinito de poemas", uns mais completos, outros mais luminosos, outros ainda mais ou menos ajustados à espessura da pele; para quê fingir pensá-lo e escrevê-lo se há pedaços de nós em cada aranha que se nos desprende da teia do poema? e o coração pulsando na infinita mentira a que chamámos memória...

      beijo, querida amiga e obrigado por esta pequena epifania!

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  7. Meu querido Jorge!

    Jorge, Jorge, Jorge...
    Nem acredito... eu já estava quase a pedir divórcio ao Eurico Portugal (brincadeirinha).
    E a coincidência:
    neste domingo, finalmente, consegui registar a troca do nome do meu blog de Humoremconto para Letras de Ana Cecília Romeu (já havia trocado o banner, mas algo nas configurações me impedia de fazer a mudança no nome para efeitos de pesquisa Google, etc.)
    Na certeza de que, mais que Euricos e humores em conto, somos todo o Universo. Podemos segmentar o Universo, mas ainda assim ele é um tudo de nós. Todos-eu que temos. Eis a Eternidade.

    Li com atenção de sempre, mas não vou necessariamente comentar teus poemas, algo nas minhas configurações pessoais não está conectando o cérebro à digitação, e bem sabes o porquê...

    Deixo-te um grande beijo e um presente,
    pois, sim, trouxe um presente para ti do Uruguay, oh, não... não é dulce de leche :( mas é tão bom quanto.

    Entregarei pessoalmente! "Verdad?"

    Mais um abraço dos Pampas, tchê Jorge!

    PS.: Enviei notícias.

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    1. aninha,
      eurico pediu-me férias e como as do jorge estão a tardar, resolvi ocupar o seu lugar entretanto :) afinal, ele e eu somos poeiras cósmicas de um mesmo universo, como bem fizeste notar.
      o nome do blogue mantém-se; o autor é jorge embora não consiga desativar eurico, porque este espaço está associado a um endereço eletrónico criado por ele mesmo. não sei se haverá algum movimento complementar a fazer ou se inevitavelmente terei de manter o eurico por ali associado à conta. seja de uma ou de outra maneira, jorge passará a ser o nome que dá a cara.
      um presentinho diretamente do uruguay? ui, e eu que adoro surpresas :); que me chegue pessoalmente, claro :)

      beijinho no aguardo!

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  8. "ouvia a cada nó de sílaba
    um silêncio de morte" - h. helder

    :)


    p.s: coincidência ou sim - descobri um livro dele [H. helder] semana passada. e aí, ficamos eu e minha barriga: lendo poesia ...:)

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    1. herberto helder é leitura de um par de olhos que se diz meu desde há muito tempo... ele, daquelas aves raras que redimensionam a palavra e todos os seus/céus sentidos.

      beijo, dani!

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