sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

diário breve da noite e da quase-loucura

[…] mesmo que já não tenha ideia dos tempos que já passaram
das pessoas que já não estão
e das almas sem corpo que nos pedem todos os dias baixinho para resistir
resistir mesmo sem forças
sem futuro
e sem lembrar o passado

João Negreiros, Ode ao filho da puta




fotografia de pedro ferreira



ergo o cigarro com a língua alta
à procura de silêncios, de
queimar as pontas
das cicatrizes e de não deixar
que a noite desate a doer.
é de sal e frio toda a linguagem que
nos ensinou a ver
e os olhos,
em crepitante loucura,
afundam-se na ceifa
como se o amanhã fosse todos os nossos dias.
levanto-me e,
arrastando o casulo, perco os passos
entre o balcão e a pista de dança
guiado por uma garrafa que me prende
ao teto de nuvens
às pétalas de açucena e a tudo
o que estremece na estação passada dos corpos.
até a canção da jukebox é antiga
como as erosões da pele
quase muda
porque me não equilibro já nas palavras nem na voz.
há um copo vazio que desafia a atenção,
entorna-se debaixo de mim
roubando-me a coragem para
enterrar o poeta e
voltar a amanhecer.

uma ave acorda
nos arbustos de metal
segreda-me ao ouvido telhados de nunca-alcançar
e eu, sem saber
como varrer o hálito para debaixo da noite,
estendo as patas, agito as asas e levanto
voo

à procura de outras mortes.


22 comentários:

  1. euriquíssimo,
    este é, talvez, o poema de sua lavra que mais me emocionou.
    trata-se de um poema dark, um momento blade runner, fotografia meticulosa deste animal esdúxulo e de asas (homem-pomba do apocalipse???), eu sinto assim.
    e tatuada ficou a imagem dos arbustos de metal, dos quais não florescerão bulbos de papoulas fosforescentes.


    abração, poeta.

    r.

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    1. robertílimo,
      dark como este tempo diluviano que, há semanas, lava a pedra e o musgo dos ossos. mesmo que o negro procure ser não tão negro.

      abraço, porque é com os braços em círculo dos amigos que deixamos de chover.

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  2. Ser-se ave, ainda que à procura da morte, é ser-se sempre ave. E ser poeta. As aves têm o seu quê de poético.Mas também dizem que quando sonhamos que voamos é porque há um desejo de fuga em nós, então sonhar que se passeia sobre o chão, não é fugir, é encarar a realidade bem de frente, mesmo que seja a da ode ao filho da puta. Voar à procura da morte é voar à procura de chão. As angústias são a incerteza certa. Que dizer mais?

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    1. voei neste teu rasgo sobre céus e chãos, célia, porque também as palavras abrem rotas, rumos e destinos.

      um abraço!

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  3. Uau! A saga do poeta, intensamente percorrida no interior recôndito.

    Beijo.

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    1. quando nos deitamos sobre as nossas próprias ausências - por dentro e por fora.

      beijo, larinha!

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    2. deitar sobre as próprias ausências...
      isto também é um poema.

      abs,
      r.

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    3. deitar com as ausências e erguer com as presenças. isso sim, um poema, e já em 2013, espero eu. há aqui um tantão de amigos à espera...
      estendo-te os braços desde um país e todos os seus lugares que é/são teu/teus, robertílimo.

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  4. Eurico, Eurico...você me deixou em silêncio profundo. Quase repito o Robertoe digo que este poema é um dos que mais me alcançou...mas é mentira, porque acontece que tua poesia chega na hora certa. Eu tenho uma coleção de poemas preferidos escritos por você! rs
    Beijos e ahhhhhhhhhhhhhhh....o comentário da alma.

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    1. taninha,
      a tua amizade e a tua generosidade - que não têm tempo -, essas sim, alcançam e fazem-no pela palavra e pelo tanto de além dela. um beijo grande!

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  5. "levanto-me e,
    arrastando o casulo, perco os passos
    entre o balcão e a pista de dança
    guiado por uma garrafa que me prende
    ao teto de nuvens
    às pétalas de açucena e a tudo
    o que estremece na estação passada dos corpos."

    nossa... quantas imagens!!
    deu vontade de olhar debaixo da pele da tua mão... deve ter aí uma passagem secreta e seus tantos caminhos!!

    delirante, meu amigo!!

    beijo, beijo, beijo...

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    1. jô,
      debaixo da pele, nada senão aquilo que é parte de nós mesmo tendo deixado de nos pertencer. até o sangue e os músculos se contraem em alucinação silenciosa.

      beijo grande, querida amiga-poeta!

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  6. quando um poeta levanta vôo, nenhuma outra ave o alcança.
    é incrível que, depois, de um poema soberbo, de um vôo que só os grandes poetas realizam, vc ainda tenha asas para voar mais. e do agito das penas caiam outros pequenos poemas, não menos soberbos (seus comentários).
    bj, meu querido poeta-ave

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    1. ira,
      é nos rostos que povoam a vida que se faz o voo da poesia e aí, com todas as palavras e algumas mortes, poder ser-se todas as aves e todos os voos num encontro de rotas que se pressente e se adivinha, mais do que se efetiva. mesmo que de olhos fechados, sem nunca perder o olhar.

      beijos tantos!

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  7. Eurico querido,
    Arrastar-se ao caminhar e muitas vezes cair sem aviso prévio. Vestir um tamanho menor de casaco na ânsia de apertar o mundo nas costas. Disfarçar-se de homem pedestre, colocar sua melhor fantasia de ontem e contar histórias com diálogos entre o nome e o sobrenome.

    Por fim, sentir o romper das tessituras em magistral voo à procura da morte, porque sabe como será a nova vida: um homem pássaro jamais consegue enganar a si mesmo, - eis aqui sua pior prisão e sua maior liberdade.

    Três abraços!

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    1. aninha,
      dizer o quê diante destas tuas palavras que nenhumas asas outras ousam alcançar? assi é, algures entre a certeza e a sua própria contradição, se fazem voos, com asas e sem elas, num céu que tantas vezes se mascara de chão sob os pés. estejam os braços abertos e a cabeça inclinada sobre o voo que qualquer superfície se fará destino.

      beijo!

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  8. Ah! Antes que eu me esqueça -

    http://www.youtube.com/watch?v=Wk3BhcMuBDI

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    1. e por falar em [não] esquecer, retenho os versos finais:
      "no me es posible ni tan siquiera imaginar
      que pueda hacerse el amor más que volando."

      obrigado pela partilha.

      beijo renovado!

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  9. diário breve da noite
    e da quase loucura
    a procura de outras mortes

    ...

    reler-te é um sinal de vida!

    beijos tuas mãos, precioso*

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    1. a procura de outras mortes e outras tantas sortes, neste espelho de fogo que nos projeta acima das chamas, quando mesmo nos sentimos matéria não carburante.

      beijo com um sorriso pelo reencontro de ti, cris!

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  10. querido amigo,
    chegar aqui e saciar a minha sede de poesia.
    e neste teu voo sem limite, sentir um arrepio de pele, e querer (eu) ser mais asas saboreando os céus...

    beijo-chuva
    (o tempo alojou-se na pele mais frágil)

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    1. andy, doce amiga,
      o tempo-chuva que se nos aloja na pele e a pele, esse monstro de dedos longos sob o qual nos abrigamos. haverá limites para além dos céus?

      beijinho!

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