... a morte, afinal, deve ser um alívio,
Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida.
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
Fotografia de eurico portugal
O cinto ergue-se acima do medo injetando, em cada chibatada, o veneno a que chamava vida. Os gritos das duas mulheres rasgam o silêncio de uma noite que volta as costas àqueles que não sabem dormir, mas, sobretudo, àqueles que não podem dormir. Com o olhar vazio, fixo num ponto onde nem a poeira fazia morada, Maurício Caridade prossegue na sua romagem penitente: o corpo, rígido, acende a pólvora dos músculos em pêndulos cadenciados, como as rotinas que não desejamos mas se nos fazem inevitáveis; no estertor do combate, uma veia do pescoço entumece à passagem do ódio, atiçando os dentes e palavras curtas que cospe em ladainha não tanto pelo ódio à mulher e à filha que sofrem às suas mãos, mas antes por acreditar que na desintegração dos sorrisos estaria a penitência para o maior dos castigos que assiste ao ser humano: ser.
Foi sempre um homem de grande devoção, alguém para quem o corpo não servia nem para dentro dele se poder existir. Maior do que a sua fé em Deus, apenas o medo do demónio que, conforme lho desenharam na catequese, exibia esgar desafiador e cauda lasciva enquanto a língua bífida molhava todos os desejos, essa matéria demasiadamente humana, por isso proibida, tão falsa quanto a respiração das paredes ou os afetos das águas. Todo o seu percurso se fez em solidão muda, recalcando tudo o que apontasse à expressão dos sentidos. Não se compreende, ainda hoje, por que razão casou com Maria Ascensão, ainda menos como lhe fora possível conceber Amélia, a jovem de 16 anos que escondia incertezas sob a roupa. Por causa dele, Ascensão perdeu a inocência e os tons de açúcar com que qualquer rapariga esmaga a morte e idolatra os sonhos, vivendo agora agarrada a um casamento derramado sobre a loucura (como se ela pudesse ser mais ácida do que aquele colete de arame farpado que Maurício lhe vestia, a cada voo noturno, sobre a cama).
Terminado o ritual, o silêncio voltou, mesclado agora com o aroma doce do sangue e da desonra, numa recriação de tons que apenas o pesadelo conhece. Somente a respiração resignada de Ascensão e o soluçar surdo de Amélia atravessam a luz baça do quarto, orquestrados pelo tiquetaque de um relógio de parede que enfeitiça fantasmas no interior da linguagem. De bruços, imóveis sobre o chão, as duas mulheres reencontram a semiconsciência atirada desde a ponta do corpo até ao extremo da violência. Do outro lado das sombras, de novo a ladainha masculina a aveludar o espaço e o tempo, enquanto do alto do crucifixo um Deus inexpressivo parecia nada compreender.
De súbito, os olhos de Maurício rasgam-lhe a paz fervida. Diante de si, segurando uma faca de cozinha, Lúcifer, o demónio que tanto teme, ele mesmo, sem enviados ou intermediários, como se a raiz do mal só pudesse ser combatida pelo próprio mal. As mãos, pequenas e magras, nem parecem ser verdadeiras como nada na vida daquela família é. Enquanto o metal luzente volteia no ar, Maurício entorna o medo de uma só vez para se fixar no convés do tempo, no passado dos outros, dos que existiram e dos que inventou. Todos os rostos lavados pelo sangue e pela sua mão impiedosa passam diante de si com uma nitidez que nunca tiveram no momento em que os conhecera e, sem entender, as lágrimas começam a obliquar-lhe do rosto extinguindo-se antes de lhe chegarem ao peito – quantas coisas são mais do que parecem? Todos os rostos e agora mais um: o seu, rasgado pelo movimento seco, certeiro, de um único golpe. Os olhos anavalham agora as imagens, tornando-as pálidas e confusas como as derradeiras ondas a circundar as ilhas da existência. De certo tinha apenas que, na asfixia do destino, usar o mal é um modo de esquecer ou de não lembrar; de definitivo Maurício tinha agora somente a morte.
Estava de regresso o silêncio embalado no movimento esquecido do relógio de parede. A roupa que um dia Amélia trajara no Carnaval desprende-se lentamente do seu corpo caindo abandonada no chão do quarto, agora manchada num sangue que a torna ainda mais rubra. Nenhum olhar na nudez daquele pequeno universo feminino que se libertara do caos.