sexta-feira, 13 de junho de 2014

chuva ácida


queria fechar-se inteiro num poema
[...] quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
e a sombra dos elementos por cima

herberto helder, a morte sem mestre



fotografia de jorge pimenta


ofereço-te a insónia
mãos que transpiram e
um par de olhos pousados em nuvens
rasgadas

ofereço-te ilhas brancas e arquipélagos
navios inteiros, tripulações e
tantos impossíveis

sobretudo
ofereço-te este braço,
esguio e magro,
no punho de um guarda-chuva
derretendo a tela entre gotas ácidas
que incham, fremem e queimam o dia
em que regressámos um ao outro,
corpo gasto de tanto assobiar
ao medo e à fome de
todas as coisas.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Escondido na luz pálida do fim do tempo


há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.

Mário Quintana


fotografia de jorge pimenta


Éramos demasiado novos mas nem isso nos impediu de colher ventos por debaixo do ventre. Sempre fomos metade carícia e um tanto tempestade, passos desalinhados à saída do tempo, essa galeria onde o perfume cresce do outro lado da luz a apedrejar o corpo e a volúpia. E, todavia, não deixámos de caminhar teatralmente para dentro das horas, por cima dos objetos, para além dos nomes.
O tempo passou ao lado das primaveras que arderam em versos, as linhas assomaram ao rosto, mas nem assim to disse, até porque sabias que eras tu quem levava toda a minha história agarrada à pele, cosida pelo lado de dentro, indiferente ao pus, ao sangue e ao esquecimento. Nada mais precisava de dizer, porque isso bastava para que tudo em mim estilhaçasse à velocidade de um jato desgovernado a abrir rasto nas nuvens, esse lugar único onde nem os deuses conseguem chegar e que os homens ousaram chamar de "amor".
Hoje, somos olhos vazios voltados para uma nova sentença: escassear sossegos e cicatrizar silêncios na grande armadilha para onde atraímos tudo o que não fomos capazes de vencer.