sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

pedras da calçada da vida adentro [IX]



I. Palavras e assim

Há palavras assim, a beijar-se na boca apagando os precipícios agarrados ao corpo.


fotografia de jorge pimenta


II. Um tampo de primavera na mesa

Um jato de tinta a afiar a folha de papel, o aroma a primavera, amoras e palavras silvestres em sedução mútua, um café escuro e alguns gomos de espantos a escorrer sumo pelos dedos. Tudo de ti aqui, em cima da mesa, ao lado de uma aragem simples, sem nome, empurrada pela lua com as mãos à espera de um gesto simples, talvez um verso, uma rima, ou quem sabe se aquela blusa vermelha com que escondias vertigens. Tudo isto aqui, em cima da mesa, num gesto sem aviso a iluminar o sol. Tudo isto aqui, o medo a ciciar aquilo que morreu.


fotografia de jorge pimenta


III. O que resta além da água?

Foi ontem, o dia em que afastaste os lábios em direção ao mar e toda tu foste lição de água a alagar a matéria envenenada dos corpos. Hoje ainda é inverno e na caligrafia do tempo evaporam-se recordações em braçadas de luz e instinto; mas, algum de nós o sente, ainda?


fotografia de jorge pimenta


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ode à respiração sem pausas


Há olhos que só olham o sonho; e, quando
o sonho se dissipa, ficam cegos.

Nuno Júdice, in Viagem


fotografia de jorge pimenta


quando me chegas,
dedos magros entornados na luz,
cai sobre nós
um arco de açucenas e espantos que,
de vento em vento,
tomba pétalas
na gramática dos corpos

demoras no céu da boca cáries
e abismos de boca
a atar sorrisos à estação fria,
porque entre os gomos e a árvore
crescem lâmpadas da palavra inteira,
rotas de lua rasa a enfeitiçar o sul
e a eterna porta entreaberta para
o desassossego
de viver milhões de mundos
que aprendemos a escrever
no silêncio de ervas queimadas e ramagens
sem folhas

é esta a paisagem onde vicejam
corações:
repara como nos cabe no peito
mesmo que em dias cinzentos
a abandonar flores.



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

variações em torno de amores e [im]possíveis


se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o meu corpo da espuma dos planetas


Vasco Gato, Se alguém disser




fotografia de jorge pimenta



I. A um palmo do peito
Enrosco-me no silêncio da tua chegada; quando me vês, entregas-me os lábios ou finges morrer.


II. Anagrama
Rosto inclinado, uma trança pendida e todo eu estremeço no impulso do teu nome: procurar-te por entre letras dispersas é acelerar a certeza deste corpo que respira.


III. Geografia
Tenho mapas, linhas de mão e astrolábios, mas continuo a despenhar-me nas latitudes da tua voz.


IV. A sombra das palavras
Fomos grito, fome e levitação, mas agora, entre mim e o teu silêncio, somente a certeza de que um dia será futuro.