sábado, 29 de junho de 2013

estreitas luminâncias para solidão branda e alfazema


O amor vem depois. Era isto o depois.
[...] um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.

José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis


fotografia de eurico portugal



Deixámos estações em cada um das mãos e encostamo-nos à sombra do mar: nem um rugido, respiração ou estertor. É por dentro, e de cabeça para baixo, que adivinhamos sentidos para os mapas de outrora e para a geografia da pele, onde deitados ou de qualquer forma sabíamos o cheiro e a textura dos fins do dia - lisos, ofegantes, agudos, até adormecerem nos corpos.
A valsa hoje é lenta e as melodias já não soam como dantes na estreiteza da dança, até porque dos frutos vermelhos já só lembramos o movimento dos lábios, para cima e para baixo, em círculos perfeitos que morrem docemente no contorno acidulado do sangue.
O tempo passa pela luz até à pausa da noite e a risca negra para onde tudo se volta lateja, como dantes, do lado pardo do coração; conheço as batidas de cor e o tempo e os lugares entre mim e o tiquetaque do que já não sou. Mas, que fazer senão riscar um fósforo, acender o verso e regressar, por fim, à planície vazia da página - de pé, as pernas firmes... e o olhar quase sempre mal iluminado.

16 comentários:

  1. Quem conhece a textura dos dias é poeta-mago...As construções passam sempre pelo extraordinário. Não há lugar-comum por aqui. E assim, meu olhar é sempre de descoberta de mundos pela tua poesia.

    p.s.: tuas fotos remetem sempre a um lugar que, embora não tenha estado, trazem saudades.

    Beijos,

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    1. os dias, a sua textura e as pequenas epifanias que, pela pele da palavra e da imagem, aproximam, fundem e transformam.

      obrigado, taninha. beijo meu!

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  2. Eurico querido,
    tão e tão linda a tua prosa poética...

    Tenho acompanhado virtualmente o trabalho de la “Acción poética Buenos Aires”, que é um grupo de poetas e amantes da poesia da capital porteña que tem por objetivo difundir a Poesia, seja por fragmentos de poemas, frases reflexivas pintadas em muros autorizados por lá. Trago aqui uma frase:
    ¿Cuándo fue la última vez que hiciste algo por primera vez?

    Sim, penso que o amor é esse ‘depois’..., mas que só consegue se definir como depois, porque antes foi ‘algo pela primeira vez’.
    Creio que apenas o orvalho consiga umedecer o chão em tons de arco-íris, ainda que depois, e que no depois, apenas chão escorregadio, solitário, hostil; mas ainda assim, em tons de arco-íris.

    Recordei-me também do filme argentino: El lado oscuro del corazón – o destruir, que nos reconstrói e nos deixa ricos, porque ilumina nosso lado escuro do coração (ou pardo, como escreveste tão bem!). Na voz do poeta porteño Oliverio Girondo, a ideia da ferida como algo que nos faz sentirmos vivos.

    Deixo-te a cena do filme:
    http://www.youtube.com/watch?v=6NiHgOvgcoA

    “ (...) iluminaste el lado oscuro de mi corazón. ¿Porque decidiste permanecer pobre, dejandome a mi tan rico?”

    Abrazos platinos!

    PS.: Não consigo vir aqui sem falar direta ou indiretamente de los Hermanos del Plata: uruguaios e argentinos, espero que isso não te canse! :) E que um dia venhas conhecer esses dois países, tenho certeza de que terás uma sensação de dèjá vu! (até pela minha insistência já de anos :)

    PS.2: Estou trabalhando neste fim de semana, e dia 01 haverá greve geral no país (mais trabalho), mas nada me faria não ler-te, o que inclui as fotografias. Poesia essencial, pois!

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    1. aninha,
      quem escreve "quando foi a última vez que fizeste algo pela primeira vez" não é penas poeta, filósofo ou pensador; é homem-homem, que é a forma mais singela de ser cada um e todos eles de uma só vez. e como viajei no dorso não apenas das palavras mas das infinitas possibilidades que por elas fui, sou e posso ser sempre que me recordar do que respira nos pequenos prodígios da imensa vida. e o amor a pontuar a voz e a dor, a palavra e a distância, o verso e a carne, o sangue e o silêncio e tantos outros binómios que não são necessariamente dicotomias senão estradas diferentes para um mesmo lugar: o da interioridade transindividual.

      abraço português, com sotaque do minho!

      p.s. há tempos tentei arranjar el lado oscuro del corazón mas não existe qualquer edição em portugal. vejo fragmentos no youtube e rapidamente percebo, numa generalização pronta, como é fácil de entender o fascínio que a película excerce sobre ti, brasileira de sangue, portenha de coração. e, sim, uruguai e argentina hão de ser chão para meus pés, num qualquer dia da minha vida. yo lo sé :)

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  3. Veio à mente dizer: somos bússolas... as direções é que nos movem! Tantas vezes tudo está tão perto e não vemos!

    Sempre viajando por aqui!
    Beijo, meu amigo poeta!

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    1. isso ter de ter olhos nos pés e pontos cardeais nas extremidades dos dedos é o que falta a tudo o que em nós se move pelo coração, jô.

      beijinho!

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  4. acender o verso, ascender as horas, coletar as insígnias dos vazios na página



    abraço

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    1. em cada nó do verso e em cada laço das horas, pequenos silêncios de morte - e o vazio da página cada vez mais ensurdecedoramente audível.

      abraço, assis!

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  5. ...busca incessante e nostálgica do que fomos...
    urgência de conhecer o EU em perpétua metamorfose.

    Beijinho meu, Eurico.

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    1. mesmo com bússolas e astrolábios, há tanto que transcende o caminho e a caminhada, querida amiga.

      beijinho!

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  6. pensei na história de alguém,
    que ao longo de uma vida, só se expressa por uma palavra, não, só conhece uma palavra. e tudo passa pelo cansaço de algumas letras. e no livro: apenas uma palavra: folha e folhas de um branco conhecido nas frases- que tem voz, som, ou um silêncio de papel.
    ´somente uma palavra. e nem é "palavra" pois. já que acaba por ser apenas uma palavra.

    bj

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    1. é a palavra silenciosa e vazia, a contrariar o signo que aprendemos a guardar vivo entre as unhas. e a boca que nomeia? e o mundo que é nomeado? para que servem, afinal?
      só há, afinal, uma palavra perfeita: a não palavra - ou o que sobra de todas as outras que não ousamos dizer.

      beijos!

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  7. ... e você continua vendo a vida com olhos de agente secreto, olhos de morte rondando a presa, olhos de Deus cuidando de um filho...
    eurico Portugal, voyeur de cotidianos, acendedor da brasa dos dias...

    sob os seus olhos, tudo se acende e reluz.

    e fosse isto mais uma declaração de amor e admiração.

    posto que amor de irmão, é também uma forma bonita de amar alguém.

    onde é que eu assino?

    abração do

    Roberto.

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    1. são os olhos do lado de dentro, robertílimo, porque os outros, os que têm orbe, retina e pálpebra, esses adivinham mais do que mostram.

      abraço de irmão à espera de acontecer na certeza do que sabemos ser!

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  8. Jorgito, meu poeta, sempre

    A palavra é a minha delícia e perdição, nada é mais arrebatador que se deixar levar por suas asas sonoras, confusas e tão tocáveis. Vivo minha existência com todos os sentimentos que me cabem e, bom ou ruim, o que de externo passa por meus olhos e pele, mas nada se compara ao abalo físico e emocional de uma palavra, um texto, um poema. A vida pode me dar um lugar, nome, caminho, amor e até alguns sonhos, mas a palavra me deixa nua, sem ponto de apoio ou qualquer identidade. Esse arrebatamento, esse esquecer-se, essa entrega absoluta, nenhuma realidade é capaz, se quer, de imaginar, ainda mais ser.

    Precisei da palavra-silêncio para me perder e estar, mais do que nunca, entregue ao tudo. Volto a poesia como um bom filho retorna aos pais.
    Estou em casa, aqui.
    Bj com todo o meu gostar de ti e de tua voz

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    1. ira, minha querida,
      há palavras que se pressentem e presenças que se adivinham, mesmo quando o tempo do silêncio nos separa do tempo da escrita. não há retorno, pois quem regressa terá ousado sair - impossível ter acontecido, pois tu permaneces: na voz, que esvazia solidões, e no tanto e bem-querer que afasta saudades e temor.

      beijinho e até sempre, querida amiga!

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