sexta-feira, 8 de março de 2013

depois [ou o tempo-advérbio na linguagem e na boca]


A vida espreita-nos sempre
Fernando Pessoa, O marinheiro


 fotografia de eurico portugal


depois,
a terra ergueu-se sobre
o tempo
– continua a chover-nos mas
o que é a pele senão
coleção incompleta de recordações
como o derradeiro olhar ou o leite de
figo a assanhar a boca?

depois,
o tempo deitou-se sobre
a ferida
– dói sempre tanto esse
intervalo entre a vulva e
a casca,
entre o vazio das pernas
e o fôlego do ventre

depois,
a ferida singrou ventos e linha
sobre mundos costurados
– tudo é demasiado na falência de
mãos impossíveis
enquanto os cabelos
tingem futuros com vendas
nos olhos,
tudo é demasiado no movimento
vazante

e nós… nós,
cada vez mais anónimos,
nós acaso sabemos
alguma coisa?

14 comentários:

  1. "o que é a pele senão
    coleção incompleta de recordações
    como o derradeiro olhar ou o leite de
    figo a assanhar a boca?"

    se sabemos?!
    sei que sinto o que não sei! e isto bem me basta!

    que texto!! li tanto e de todo jeito... e levei!

    beijo, meu amigo de olhar único!

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    1. saber e sentir, jô que equação a que aqui deixas: saber que se sente mesmo que nada mais se saiba.
      até o anonimato nas pálpebras se sente enquanto tudo o mais é luz de candeeiro a obliquar, fria, sobre os vultos difusos e já de costas.

      beijo, querida amiga!

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  2. Não tem nada a ver... ou terá ? a fotografia lembrou-me o cartaz do filme "O Diabo veste Prada". "Sentir, sinta quem lê!" Eu li e não sei o que dizer, apenas concordo... concordo...

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    1. não me recordo do cartaz do filme "o diabo veste prada" - tive de confirmar no google :); esta fotografia nasce de um movimento cinematográfico de um filme do tarantino que me impressionou. recordo-me da porta a abrir, da perna feminina a descer e a pousar no asfalto. seguiram-se os primeiros passos para diante - outra foto que começa a desenhar-se-me, também.

      um abraço!

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  3. Eu nem sei qual imagem me arrebata mais, querido amigo. Essa imagem da pele como
    coleção incompleta de recordações...ah!...cabelos vendados tingindo futuros...ah!... Eu também li e reli e reli, com medo que a embiaguez me deixasse..rs E vou levar comigo também.

    Beijussss,

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    1. a pele como metonímia de tudo quanto em nós é coleção iniciada mas de final ainda por divisar, verdade, taninha? o que em nós se completa, pois?

      beijos!

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  4. querido amigo, leio-te, e a cada recanto das palavras levo comigo tanto sal, e cada vez mais essa verdade, saber que pouco se sabe...
    talvez a pele que nos veste nos denuncie, sempre!

    beijinhos!

    p.s. subtil sensualidade respira este "depois"

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    1. a denúncia da pele e tanto por desvendar, querida andy - quão infinito é o que desconhecemos?

      beijinho!

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  5. se possuísse todos os livros do mundo, ainda sim, eu seria uma história incompleta
    bj imenso, poeta queridaço

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    1. possuir todos os livros do mundo: ser-se alexandria em chamas, por saber-se a porta do paraíso e não se ter a chave para nele se entrar. a incompletude basta-nos, verdade?

      beijos, amiga linda!

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  6. nos movemos neste desconhecimento que embaraça os passos, marcados indelevelmente na pele e nas retinas,


    abraço

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    1. conhecê-lo (ao desconhecimento) é sabermos um pouco mais sobre como caminhar.

      abraço!

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  7. Eurico querido,
    deixarei aqui um pouco do advérbio de lugar em teu tempo-advérbio.

    Um fragmento do conto “Alice Springs” do escritor e fotógrafo uruguaio, Mario Levrero, (falecido em 2004):

    "Muchas veces había soñado, durante años y años, con llegar un día a Paris; sin embargo ahora yo no estaba allí, había llegado a Paris sin llegar. Yo estaba en Marie, y Marie ya no estaba, y ahora me movía sin sentido en una ciudad sin sentido."

    Grande beijo!

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  8. aninha,
    ai, esta escrita sul-americana, em castelhano, que, pela tua voz, se faz primeira em mim: como tantos dos lugares de cada um de nós começam e acabam além-geografia...

    beijinhos!

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