sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

poema para um homem, a sua morte e talvez nenhum regresso

haverei de me definir até à
exaustão e tornar-me
naquilo que nunca fui.

valter hugo mãe


fotografia de eurico portugal

chega clandestino e sem
aviso
o som que agita o
o dorso do homem cicatrizado
pela noite.
chega a meio termo,
entre o devir e a lágrima
de duas pétalas brancas
que prometeu não voltar
a colher.

no murmúrio da terra
o som cresce
faz-se maior
e o homem
deita-se com as amoras maduras
que enrolaste na boca
a escorrer resina pelo silvado
da pele.

recebe-o com linhas tortas,
marcas-d’água a trepar pelo
tempo
até aos braços de um deus cor de sépia,
louco e nu,
deitado entre o milagre e a
fotografia.

se o vento soprar de leste,
o tempo voltará a ser nuvem
nas suas mãos,
tecido a deslizar
sem pressas
para o interior da voz
para a magnólia de um poeta:
os lábios dentro do som
e o homem
a enumerar silêncios
com que atavas os cabelos
e que quase o
derrotaram

o homem.


20 comentários:

  1. e vamos tatuando o tempo com nossas marcas... indeléveis passageiros!

    tuas capturas me capturam!

    :D

    beijo, meu amigo!!

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    1. jô,
      até as letras vergam ao tempo, indeléveis companheiras. torná-lo, ao tempo, companheiro de viagem é talvez a chave de todos os enigmas.

      beijinho!

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  2. Eurico querido,
    "poema para um homem, a sua morte e talvez nenhum regresso" - esse título me faz muito sentido. Como encerrou Wilde em De Profundis - "o significado do sofrimento e toda sua beleza".

    Começo pela fotografia que tem a ver com o restante do comentário. Trabalho em designer gráfico desde meus 18 anos, já vi tudo em termos de fotografia. Creio que existam etapas como em qualquer aprendizado: aprender as técnicas, os recursos e junto com isso permitir-se o olhar próprio. Vi muitas imagens de fotógrafos conceituados, perfeitas, senão fossem clichês de imagem: algo do tipo barcos em rio ao pôr-do-sol, uma pessoa olhando pela janela ou refletida num espelho. E existem as ciladas como pontes e escadas, difícil encontrar a estranheza do olhar diferenciado em cenários como este. Aqui conseguiste nesta, no detalhe do corrimão que passa ser vida-inteira nesta foto, assim sinto que avançaste degraus. Se posicionasse a câmera mais para a direita e centralizasse o homem: clichê de imagem - todo mundo já fez uma foto assim.

    O que quero dizer com tudo isso é que muitas dores que temos dentro de nós mesmos, talvez a maioria delas, não seja culpa de forças externas, divindades, (claro, existem fatalidades, por exemplo, ter sofrido um acidente de automóvel que não teria acontecido se tivéssemos saído quaisquer 10 segundos atrasados de casa), mas de não termos nos importado com os detalhes. A vida sempre nos mostra eles, às vezes nos esfrega no rosto, nem sempre percebemos (se vamos percebendo, amenizamos coisas aqui e ali, nos permitimos mortes e nascimentos por própria opção e arbítrio). Temos que ser verdadeiros Sherlocks diários, desvendar, observar, desde as coisas que nos pareçam mais superficiais, mas que lá adiante ao serem represadas, estouram como um soco no estômago, e tudo se fará mais temporal e menos chuva. A observação, a leitura atenta de tudo e todos é o que nos traz possibilidades, nos dá o buffet de escolhas. Valorizarmos o que existe ao redor, em especial termos consideração pelos outros - até porque nossas mortes ou nascimentos interferirão em pelo menos uma pessoa a mais além de nós.

    Um exemplo muito superficial disso - tu te inclinarias à aquisição de um automóvel, antes de chamar um mecânico para avaliar o motor, se tivesse as seguintes características? - um pequeníssimo desgaste no lado esquerdo do guidom, e o banco traseiro muito novo como se ninguém o tivesse usado. O que percebes nesses dois sinais visuais?

    Com os sentimentos e tudo o de mais importante que temos, que não contamos nem saberíamos explicar por mais que estudássemos, penso, seja a mesma coisa. Perceber os sinais, e a vida no dará essas oportunidades, na maioria das vezes, essenciais, que mudam rumos e mesmo nos fazem perder coisas e/ou pessoas especiais.

    Os detalhes podem definir nossa vida inteira, e muitas vezes eles estão no exterior.
    Retornando a frase do Retrato de Dorian Gray e sublinhando: "O verdadeiro mistério está no visível, e não no invisível".

    Beijos muitos!

    PS.: Eurico ficarei um período off-line. Retomo às próximas leituras após uma viagem e o tanto de trabalho a me esperar no retorno. Aviso-te, porque sei que influenciei em qualquer momento para que criasses o Orvalho.

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    1. aninha,
      as tuas palavras entram aqui como um texto à volta dos textos que verdadeiramente nos constituem: os da vida, que se escreve, também. e de uma forma tão estruturada e interligada que me deixa verdadeiramente sem fôlego: da fotografia para a sua interpretação que ligas à ideia da atenção aos detalhes, leitmotif do próprio texto, ele mesmo, metonímia e projeção da escrita que se faz essencial: a da nossa própria respiração. no final, a tese: em tudo há essência e acessório, sendo certo que aquilo que nos conduz à desmontagem semântica de um e de outro raramente é o óbvio, o que diz, o que taxativamente vincula, mas antes o que, nas entrelinhas e por debaixo do sobrolho, apenas se sugere - e que aqui designas de sinais. aquele que os pressente, aquele que os ajuiza, aquele que os traz para dentro de si estará seguramente mais perto de se conhecer-conhecendo. e, nessa medida, visível e invisível são apenas duas faces de um mesmo rosto: o seu.

      obrigado por esta nova incursão pelo metatexto da vida - o que nos define.

      beijinho e uma ótima viagem. até ao teu regresso. aqui, ou em qualquer cantinho de escrita que a tantos de nós aproxima.

      p.s. uma pequena curiosidade: esta fotografia foi tirada num safari fotográfico com um amigo; após a edição, mostrei-lhe e ele, bem mais capacitado do que eu tecnicamente, diz-me que a foto capta tensão e angústia silenciosas, mas que valoriza, sobretudo, o ângulo inferior, quando ele preferiria os ângulos superiores, próximos do teto e da luz. mas terminou dizendo que não há uma regra definida para este tipo de registos, sendo, no limite, o sentido estético ou o objetivo do fotógrafo quem deve comandar as retinas.

      beijinho renovado!

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  3. Uau, que poema! Cada verso disfarçado de leveza, nos envolve tão intensamente, mas é denso, incrivelmente denso.
    Lindo!

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    1. larinha,
      escondo-me na timidez da interjeição, de onde espreita um agradecimento de amizade. obrigado!

      beijos!

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  4. Entre o som clandestino
    E o silêncio peregrino:
    O homem em desatino!


    Ler-te é inspirador!
    Beijo-te, precioso-parceiro-poeta.

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    1. o homem e o desatino que perpassa a flor dos lábios. tantos milagres a apodrecer-lhe nas venezianas do olhar...

      beijinho, cris-tal, parceira de tantas alvoradas poéticas!

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  5. O tempo não possui juízo e não possui os homens, porque haveríamos de possuí-los, logo nós, os que abanam mãos?
    aqui encontro o combustível perfeito para alimentar minha máquina de loucuras e de vidas
    bj, poeta de todos os tecidos

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    1. o tempo nada possui.
      quando tudo se faz nada, nas calhas do tempo, o que ganha chronos senão a sua própria derrota? também o tempo morre com o homem e com a memória do que com ele fomos e não fomos - como aquele menino que esconde da mãe as suas mais insuspeitas traquinices.
      no duelo homem/tempo, não há vencedores nem vencidos; ainda assim, no deve e haver, há um que perde mais do que o outro: o tempo. vai-se com o homem e porque se faz unicamente de memória, quando o homem se vai, o tempo, esse deus menor, com ele se foi...

      beijinho, ira-poeta, profunda conhecedora dos labirintos do ser!

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  6. euriquíssimo,
    num sei prumodequê, comecei a ler o seu poema e varou-me os ouvidos a voz do joaquim de almeida dizendo " enquanto vivos" naquele disco do represas.
    ficou aquela sensação de deja vu...
    tentei achar a versão original e achei esta aqui (devidamente bagunçado pelo ao vivo e gravada, provavelmente de um celular), igualmente bonita... está sem o joaquim de almeida.... mas com uma moça (provavelmente portuguesa) soprando no Uilleann pipe...

    http://www.youtube.com/watch?v=7taGo6QbcrU


    e o benfica, ein????
    bem na fita :-)

    abração, amigo da prateleira mais alta.

    r.

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    1. primeiríssimo amigo,
      recordo-me bem do vozeirão do joaquim de almeida a rasgar os tons bucólicos e ancestrais da voz do represas, numa combinação que não foi desajeitada de todo. aliás, o represas, ao longo dos tempos, e já na era pós-trovante, soube rodear-se de gente com valor vocálico e musical para também ele crescer, experimentando territórios que durante anos lhe permaneceram vedados nos trovante. mesmo que em línguas outras que não a de camões.
      sobre o joaquim de almeida, sempre o achei um canastrão no cinema (aquele tipo de atores que cumprem um determinado tipo de papéis sem brilho ou rasgo e que tornam as suas personagens mais planas do que a road 66). ainda assim, a sua voz é única para um determinado tipo de registos - imaginaste-o, já, num filme de terror? :)
      obrigado por me teres proporcionado esta viagem até ao interior da memória. memória que, envolvendo o represas, chama sempre por ti! 2014 está já à porta e o coliseu continua de pé :) (a propósito, perdi os bilhetes para um concerto, na semana passada, justamente lá; dos islandeses sigur rós - conheces? uma malha absoluta.)

      abracílimo de quem sente a tua falta. eu e tantos dos que por aqui cresceram ao conhecer-te.

      p.s. o benfica escorregou na liga, na semana passada, mas o porto acabou por falhar igualmente, reacendendo um mano a mano sem precedentes na história do campeonato português - pelo menos, dos últimos anos. hoje, existe a pressão de ganhar à académica, depois da vitória do rival no estádio do beira-mar. a meio da semana, uma jornada europeia épica: 0-1 em leverkusen, com mais uma obra de arte do insuspeito cardozo.

      abraço renovado, amigo de todo o tempo!

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  7. Eurico, poema e fotografia com a espessura de uma alma escorpiana como a minha...:-) Não fosses tu, não visse eu tua marca de delírios libertadores que me acalentam a alma, assumiria a cena, mudaria o gênero, seria a Mulher a enumerar silêncios. O outro lado de mim, o que não alcanço, é uma poesia como essa. O poema e a fotografia ( demais essa foto!) são almas gêmeas aqui. Perfeitos.

    Beijos,

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  8. taninha,
    onde começa o homem e acaba o poema? num e noutro, a espessura do silêncio a anavalhar anos, meses, dias com a lâmina das palavras que aos poucos perdem o sangue e empalidecem: lírio, lábio, beijo, lágrima, terra.

    beijos, querida amiga!

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  9. "se o vento soprar de leste,
    o tempo voltará a ser nuvem
    nas suas mãos,
    tecido a deslizar
    sem pressas
    para o interior da voz
    para a magnólia de um poeta:
    os lábios dentro do som
    e o homem
    a enumerar silêncios
    com que atavas os cabelos
    e que quase o
    derrotaram

    o homem."

    verdadeiramente belo!
    eis-me aqui retomando forças...
    beijinho, querido amigo!

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  10. andy, querida amiga,
    as forças que o mundo além-palavra teima em ir roubando, aos poucos, como se espelho turvo de olhos postos nos passos.

    beijinho!

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  11. Encantada com este espaço!
    Voltarei certamente para beber as palavras de quem sabe.
    Cumprimentos, Eurico.

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    1. sandra,
      porque os lugares são as pessoas, faça-se este teu, também.

      um beijo!

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  12. o tempo voltará a ser nuvem na palavra que tudo perpassa indelével: como pedra ou outro minério mais cruel,



    abraço

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    1. e, na volta do tempo, a perenidade da palavra sobre a mão que escreve e se reinscreve, quando não mesmo se reescreve.

      abraço!

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