sábado, 5 de janeiro de 2013

no café > o pedido > chá azul

Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.

Ana Salomé, Lume


fotografia de eurico portugal


um ponto cravado no escuro
imobilizando o frio,
três casarios contíguos
e a respiração de quem não se atreve a enfrentar
a noite.
lá dentro
tudo ruge tudo vibra tudo alcança
por entre vultos com rosto
que perdem retinas no azul da alma
de cada objeto.
sobre as cabeças,
um céu de espuma
a amaciar os dias que ali se sustêm.

estendo as mãos para o livro
que me agarra os dedos
segredando o esquecimento
de todas as mortes ateadas
pela poeira dos cigarros –
a mão queimada
as flores quase abandonadas
o livro,
não lhe leio um autor
adivinho-lhe o título,
a história, essa, sei-a
de cor.

a vida abeira-se de mim:
uma criança que passa em furiosa correria
dois velhos explicando como nasce a morte
e um beijo asfixiado na menstruação da mentira.
com avental de renda,
a vida cada vez mais próxima:
– o que vai ser?
– uma chávena de chá
azul
como os pássaros e a voz
a adormecer no coração das palavras,
uma chávena de chá
azul
muito quente
a queimar a porta
e o seu caminho,
uma chávena de chá
azul
a fumegar no rosto
duas linhas de água infinitas,
uma chávena de chá
azul
a adivinhar-me feliz nesta estação
em que permaneço deitado
sem roupa
a tiritar
no inaudível canto da noite
que nem cheguei a conhecer.

ergo os olhos,
o chá acabara de chegar:
incolor, frio, fogo negro
como todos os pedidos impossíveis.

sobra o silêncio a envelhecer no ar.

 

14 comentários:

  1. Meus olhos quase se perdem quando "a vida abeira-se de mim"...

    difícil falar nesta hora!

    Beijo,meu amigo poeta!

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    1. os olhos perdem-se nos dias lentos, talvez sem regresso. mas a vida: ainda intacta.

      beijo, jô!

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  2. Nunca devias ter silenciado a tua voz.
    Os velhos sabem sempre mais do que nos, ainda quee disfarcados na sua sana loucura!

    Para quando um cha, pergunto eu . . .


    Beijo

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    1. há momentos em que a voz perde a frescura, a pureza de dentes brancos e a boca quase apodrece nas palavras que cuspimos. é a voz que nos silencia nesse então...

      abraço, laura!

      p.s. para já. e se chá, que não azul, porque não quero enredar-me nos pedidos impossíveis.

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  3. Eurico querido,
    nossa!

    Chá azul -
    aquele momento em que decidimos colocar mais dois pontos na sequência daquele único que a vida nos impôs.

    Beijos muitos!

    PS.: Saudades de ti e da Laurinha..., saudadão, aquela no aumentativo que aprendi com vocês!
    Pois os convido a um café noir forrrrrte daqueles que inauguram tudo e ainda mantém. Porque acredito que as reticências, quando de fato queremos, sempre convergem a muitos pontos de exclamação. Devo ir, ou vocês aportarão aqui nos Pampas?

    Beijos em vocês regados a café (tamanho litrão!) e amizade forrrrrte e sincera!

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    1. aninha,
      que a pontuação nunca feche; antes abra mundos e todas as possibilidades.

      quanto ao café, gosto dele negro, bem forte, a aquecer pelo lado de fora e de dentro. pois, se aqui ou nas pampas? o melhor será mesmo um aqui e outro nas pampas. é que as coisas boas e mais que desejadas, mesmo quando repetidas, nunca são iguais ou demasiadas. a laura alinha certamente.

      beijos com saudades de ti e de nós os três juntos!

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  4. o silêncio evapora, euriquíssimo.
    e sai fazendo barulho, cantando seus pneus por aí.
    a caneca é azul.
    fosse encarnada - como a camisa do glorioso SCLB - o chá teria tido outro sabor...
    certo???
    fiquei olhando pra sua mesa e me lembrando da mesa polaca, as moças cruzando e descruzando as pernas como se os dois velhotes na mesa em frente estivessem prestando atenção.

    abração deste seu amigo,

    r.

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    1. o silêncio evapora, robertílimo, e um pouco de nós consigo.
      pois, a escrita deste texto soa a heresia: chá azul, o que esperar dele? mas igual heresia é chamar o glorioso slb de sclb, hehehe!
      esta mesa que aqui vês correspondeu a uma experiência fotográfica repetida umas 200 vezes até conseguir chegar ao resultado pretendido [é o preço a pagar pelo amadorismo]; já a outra mesa era bem mais interessante, cosmopolita, poliglota, e visualmente vistosa. :) aprendi umas palavrinhas em polaco, sim senhor, não porque me interessasse; antes, porque a acústica da taberninha do manel é mais que boa :)

      abraço deste teu amigo!

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  5. Li há tempos que o laranja é a cor mais apetecida pelo estômago (cérebro) e o azul a menos, para comer. Um chá azul destronará qualquer um.

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    1. ainda hoje procuro quantificar os efeitos deste chá em tons de azul, rodrigo...

      abraço!

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  6. Eurico, estou voltando do recesso. Te ler cria anos novos pra mim. Você é um poeta maravilhoso, sabe disso, não? Li e fiquei sem palavras. Vou reler. tentar não perder isso que se abriu em mim, que se abre sempre que o leio.

    Beijos, querido.

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    1. taninha,
      antes de mais, saber-te de regresso é uma notícia estupenda. espero que o recesso tenha correspondido a tudo quanto nele buscavas.
      sobre as tuas palavras, que dizer, senão que são o estímulo maior que possa ter? verdadeira seiva de estrelas em cada verso torcido pela escuridão silenciosa.

      beijinho!

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  7. querido amigo,
    faltam-me palavras para este belíssimo chá azul, segui-lhe o aroma e a neblina e ainda paira no ar tanto do que aqui levo...
    um doce abraço!

    p.s. a fotografia, linda!
    adoro ana salome, conheci a sua escrita através de ti.

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  8. andy, amiga de tantas leituras,
    este azul que aponta ao infinito não raras vezes se confunde com os nossos abismos. onde começa um e outro, pergunto-me?

    beijinho!

    p.s. a ana salomé é uma das mais talentosas poetas(isas) da sua geração. tive o especial prazer e o singular privilégio de com ela privar de perto e como isso foi enriquecedor.

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