sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

versos para rostos e rastos de noite em levitação

Dos carros que passam, o único que talvez pudesse ter-me dado uma boleia
ia no sentido contrário ao meu.

Jack Kerouac, Big Sur

fotografia de eurico portugal

às vezes chegava tarde
carregado nos destroços do corpo

impossível apagar os vestígios
da noite
com que sujámos as mãos
porque as bocas depois do incêndio
erguem cicatrizes regadas
com os dias lentos de não-regresso

na memória desabitada
um beijo
breve, subtil, espetado na melancolia
de palavras abandonadas pela saliva
por tudo ser mentira varrida para debaixo
do tempo e das travessias:
roupas rasgadas
a ferocidade de orquídeas
e o rastilho do sexo a tatear pela chama
mas a cama, essa,
deitada numa carta
quase um rosto, um talvez rasto
invariavelmente anónima
sempre sem remetente

passei a chegar cedo
mas a noite continua a atravessar-me
os pulsos – então sei:
a vida e a morte pertencem-me
para esquecer o som agudo deste grito.

 

16 comentários:

  1. a luz ao fim do tunel (da fotografia) não é, com certeza, o comboio entre o porto e braga.

    afirmo:
    o beijo que o poeta espetou na melancolia é um cravo sangrando na lapela.

    sussurro:
    o grito calado de vida e morte não vão além, euriquíssimo.
    é pura sina.
    e condição.

    abraça-o,

    este de pernas curtas lá das terras altas de minas gerais.

    r.

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    1. entre braga e porto, robertílimo, há muito mais do que túneis; é a luz que se impõe ao trilho e não o inverso. haja trens sobre os trilhos, desses que uma vez passando nos ensinam a difícil arte da espera, nesta unidade frágil que nos consome e envolve e a que chamamos "tempo".

      um abraço marcado pela sina das saudades, meu muito amigo!

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  2. à noite, reinam as pupilas dilatadas... fascinam-me com seus mistérios: é quando mais me esqueço!

    beijo, amigo poeta!! Adoro te ler!



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    1. jô,
      mesmo que tudo o que esquecemos seja o que sempre será lembrado. são esses os mistérios que nos definem seres noturnos - como bocage magistralmente nos definiu.

      beijo, querida amiga!

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  3. Especialmente estes últimos versos, Eurico, a noite atravessando os puslsos, poeta, poeta...tuas imagens parecem inaugurar-me sempre.

    Beijos,

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    1. taninha,
      e o que passa, então, a correr-nos nos pulsos?

      beijo!

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  4. a noite me é simpática, talvez por ser semelhante ao meu gênio. Gosto de ouvir seus gritos.
    levo comigo esse rosto sem-regresso
    bj imenso, meu amigo amável, com a espera do próximo poema

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    1. ira, querida amiga de tanta poesia,
      a noite e todas as usas fogueiras. na margem, um só olhar, nesse rosto-sem-regresso.

      tão bom ter-te aqui neste desfiar de palavras noturnas.

      beijo!

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  5. Eu te agradeço, Eurico, por tudo, por tanto, por toda a compreensão dos trajetos e dos muitos significados. Teus poemas são o resultado unívoco disso e são admiráveis.
    Imenso abraço

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    1. rejane,
      quanto do que melhor nos define é justamente [na escrita como fora dela] os trajetos e os seus significados? afinal, é a poesia na peugada da grande fábula da vida [ou o contrário!?].

      um beijo com profunda amizade!

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  6. Eurico querido,
    tudo tão belo, tão Poesia que se faz essencial em mim!

    "Se há saudades é porque houve o encontro", disse-me uma amiga poeta que conheci pessoalmente há pouco tempo.
    Transportando essas sábias palavras para esta dimensão-poema, posso afirmar que se há noite é porque houve o dia.

    Somos três coisas: dia, noite e o tanto faz.
    Seres-inteiros de 24 h que contamos, mais todas que não dizemos nem esquecemos.

    O que nos atormenta é o mesmo que nos liberta.
    Ou não seria as estrelas a provar isso, verdade?

    Beijos muitos e te cuida, tá bom?

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    1. ana cecília, amiga de presenças e ausências,
      os dias gravitam ciclicamente em nosso redor: se há noite, é porque houve dia e haverá de novo noite para outra vez ser dia, num esquema que se repete para lá do dia em que deixemos de o contar - até porque haverá sempre alguém que o saberá. o que o ser coletivo não esquece é o que se perpetua para além da morte. os dias e as noites, as saudades e os encontros, a poesia e o objeto do canto. tudo, no verdadeiro enlace das moradas primeiras.

      beijo, amiga minha!

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  7. Há um poeta gaúcho, Mauro Moraes, que traduz exatamente isso que tu te referes, Eurico Portugal, duas linhas que de certa maneira unem Brasil e Portugal:
    "esporeei reminiscências com pesadas nazarenas,
    na esperança que a saudade amansasse as minhas penas!"
    Há saudades que nunca curam,
    imenso abraço

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    1. há saudades que nunca curam.
      e como isso nos define para além de todas as presenças.

      um beijo, querida amiga!

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  8. aposto que tu já sabias que eu não ia saber como comentar, nem por onde começar...
    oh tarefa difícil esta que me deixas...
    Kerouac? fiz-me a ler os livros dele, o big sur é um que está na prateleira...
    HTDA? tu sabes que essa é a minha música favorita...
    a photo? começo a ficar chateada, pois adoro cada vez mais a tua fotografia e eu tão adormecida...


    há uma altura em que a noite parece cair em nós e nunca mais nos abandona
    e há o frio, o silêncio, a mão gélida nas costas

    beijinho


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    1. laura,
      ao postar kerouac e nin não poderia pensar em mais ninguém senão em ti, obviamente, confesso que me pareceu que pudesse ser-te relativamente fácil e simples comentar, até por isso mesmo :)

      quanto às fotos, espreita a galeria que hoje posto: em guimarães, num fim de tarde sombrio, com o frio agarrado ao ossos, mas a nikon sempre de olhos postos no que se mexe... e permanece estático.

      beijo, amiga!

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