domingo, 2 de dezembro de 2012

Cinto/Sinto ou a homonímia do Ser?

... a morte, afinal, deve ser um alívio,
Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida.

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis

Fotografia de eurico portugal

O cinto ergue-se acima do medo injetando, em cada chibatada, o veneno a que chamava vida. Os gritos das duas mulheres rasgam o silêncio de uma noite que volta as costas àqueles que não sabem dormir, mas, sobretudo, àqueles que não podem dormir. Com o olhar vazio, fixo num ponto onde nem a poeira fazia morada, Maurício Caridade prossegue na sua romagem penitente: o corpo, rígido, acende a pólvora dos músculos em pêndulos cadenciados, como as rotinas que não desejamos mas se nos fazem inevitáveis; no estertor do combate, uma veia do pescoço entumece à passagem do ódio, atiçando os dentes e palavras curtas que cospe em ladainha não tanto pelo ódio à mulher e à filha que sofrem às suas mãos, mas antes por acreditar que na desintegração dos sorrisos estaria a penitência para o maior dos castigos que assiste ao ser humano: ser.
Foi sempre um homem de grande devoção, alguém para quem o corpo não servia nem para dentro dele se poder existir. Maior do que a sua fé em Deus, apenas o medo do demónio que, conforme lho desenharam na catequese, exibia esgar desafiador e cauda lasciva enquanto a língua bífida molhava todos os desejos, essa matéria demasiadamente humana, por isso proibida, tão falsa quanto a respiração das paredes ou os afetos das águas. Todo o seu percurso se fez em solidão muda, recalcando tudo o que apontasse à expressão dos sentidos. Não se compreende, ainda hoje, por que razão casou com Maria Ascensão, ainda menos como lhe fora possível conceber Amélia, a jovem de 16 anos que escondia incertezas sob a roupa. Por causa dele, Ascensão perdeu a inocência e os tons de açúcar com que qualquer rapariga esmaga a morte e idolatra os sonhos, vivendo agora agarrada a um casamento derramado sobre a loucura (como se ela pudesse ser mais ácida do que aquele colete de arame farpado que Maurício lhe vestia, a cada voo noturno, sobre a cama).
Terminado o ritual, o silêncio voltou, mesclado agora com o aroma doce do sangue e da desonra, numa recriação de tons que apenas o pesadelo conhece. Somente a respiração resignada de Ascensão e o soluçar surdo de Amélia atravessam a luz baça do quarto, orquestrados pelo tiquetaque de um relógio de parede que enfeitiça fantasmas no interior da linguagem. De bruços, imóveis sobre o chão, as duas mulheres reencontram a semiconsciência atirada desde a ponta do corpo até ao extremo da violência. Do outro lado das sombras, de novo a ladainha masculina a aveludar o espaço e o tempo, enquanto do alto do crucifixo um Deus inexpressivo parecia nada compreender.
De súbito, os olhos de Maurício rasgam-lhe a paz fervida. Diante de si, segurando uma faca de cozinha, Lúcifer, o demónio que tanto teme, ele mesmo, sem enviados ou intermediários, como se a raiz do mal só pudesse ser combatida pelo próprio mal. As mãos, pequenas e magras, nem parecem ser verdadeiras como nada na vida daquela família é. Enquanto o metal luzente volteia no ar, Maurício entorna o medo de uma só vez para se fixar no convés do tempo, no passado dos outros, dos que existiram e dos que inventou. Todos os rostos lavados pelo sangue e pela sua mão impiedosa passam diante de si com uma nitidez que nunca tiveram no momento em que os conhecera e, sem entender, as lágrimas começam a obliquar-lhe do rosto extinguindo-se antes de lhe chegarem ao peito – quantas coisas são mais do que parecem? Todos os rostos e agora mais um: o seu, rasgado pelo movimento seco, certeiro, de um único golpe. Os olhos anavalham agora as imagens, tornando-as pálidas e confusas como as derradeiras ondas a circundar as ilhas da existência. De certo tinha apenas que, na asfixia do destino, usar o mal é um modo de esquecer ou de não lembrar; de definitivo Maurício tinha agora somente a morte.
Estava de regresso o silêncio embalado no movimento esquecido do relógio de parede. A roupa que um dia Amélia trajara no Carnaval desprende-se lentamente do seu corpo caindo abandonada no chão do quarto, agora manchada num sangue que a torna ainda mais rubra. Nenhum olhar na nudez daquele pequeno universo feminino que se libertara do caos.

 

10 comentários:

  1. sinto... por isso conto!

    leio-te, leio-te, leio-te... e sinto!

    beijo,amigo Eurico!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. e sinto
      sinto e leio
      sinto quem lê, quem conta, quem canta.
      e toda a escrita se faz, mais do que necessária,
      essencial.

      beijo grande, querida joelma!

      Eliminar
  2. Salva, salve...que aqui há poesia e profunda filosofia, e só tu mesmo pra saber dizer certas coisas:"... orquestrados pelo tiquetaque de um relógio de parede que enfeitiça fantasmas no interior da linguagem.." Devorei num fôlego, do início ao fim e depois voltei par pensar na profundidade e sabedoria de tanta coisa dita aqui...
    Beijos, poetíssimo!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. porque habitamos lugares pontuados pelo esquecimento onde até as borboletas se confundem com o veneno... há palavras que, na loucura da linguagem, não são arrancadas à voz; arrancam a própria voz. taninha, são as tuas palavras que aconchego na pele salgada pelos impercetíveis ventos.

      beijos!

      Eliminar
  3. pqp, poeta, que textaço! me arrastou pelos cabelos,com as cores nítidas, por esse labirinto subterrâneo dos espíritos (des)humanos e fui Maurício, Maria Ascenção, Amélia, na dor que há em cada um.
    Obrigada, por me agitar o sangue
    bj imenso, poeta das minhas pulsações

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. ira,
      é o fio da navalha a equilibrar-se no que umas vezes tempos, outras perdemos. e as cores, mesmo que nítidas, acabam por amarelecer e cheirar ao bafio do que mais tememos.

      beijinho!

      Eliminar
  4. Caro Eurico,
    interessantíssima a construção do conto!
    Confesso que tive que me despir como leitora, ou melhor, de alguma forma, me permitir falecer algumas vezes no texto. (umas cinco vezes..., ainda tenho mais umas duas vidas :))

    Além factual, e intencional ou não, o uso de uma narrativa, por vezes difusa, em outros pontos quase metafórica, no sentido de abrir caminhos, rica em imagens, me deu um visto ao onírico.
    Prendo-me nisso, pois não seria assim uma das tantas percepções humanas de morte? O falecer do figurativo e concreto, e a possível continuidade no abstrato e inexplicável? (ou mesmo a legitimação do abstrato e inexplicável).
    Final maravilhoso e surpreendente.

    Beijo!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. a narrativa é a própria vida, querida ana cecília! e como ela, também a narrativa é umas vezes clara, definida, resoluta, para noutras vezes ser arrastada, imprecisa, adiada, num processo caleidoscópico de nasceres e morreres à guisa da palavra-essência que dá sentido à(s) própria(s) existência(s).

      sempre inspiradoras as tuas leituras.

      beijo meu!

      Eliminar
  5. euriquíssimo,
    no outro dia me deram tickets pro show do dead can dance em nova york e eu fiz que não vi. se ainda não rolou, vou ver, em homenagem a você.
    fora isto, estou adorando ver o amigo se manifestar em prosa. ah, sim, claro, e em fotografias.

    estás uma espécie de sebastião salgado (com o devido pedido de perdão pelo bairrismo... você tem que ler/ler Afrika, fotos dele, textos de mia couto... se ainda não viu) das terras de viriato.

    abraço afetuoso, fraterno, amigo mais que querido.

    r.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. robertílimo,
      não sou fervoroso fã de dead can dance, embora esta música me reenvie a tantos lugares onde fui e seguramente serei... se estivesse em nova-iorque, não só iria ao show deles como o faria contigo :)
      quanto à prosa, tenho dificuldade em me desprender do olhar lírico e há momentos em que não sei bem em que galerias da escrita escarafuncho.
      sebatião salgado é um mito e as suas viagens a áfrica, brilhantemente registadas pela sua canon e admiravelmente vertidas em livro são uma preciosidade. os rostos e os pedaços de vida que cada um dos retratados partilha com o olhar de salgado são uma inspiração para qualquer um. não tenho o livro, mas conheço-o bem, muito bem, mesmo. as minhas fotos são apenas ensaios, descobertas de pequenos nadas que me ajudam a perceber como a máquina pode ser uma extensão da nossa própria sensibilidade. fiz um pequeno upgrade no equipamento, há pouco tempo, e a fotografia começa a tornar-se, mais do que num hobby, num verdadeiro vício. vício bom, acrescentaria.
      ontem o meu benfica esteve à beirinha de fazer história: 0-0 contra o barça, em camp nou, adiando, mais uma vez, a possibilidade de ser feliz na champions; teve umas 5 chances de golo claras mas os artilheiros tinham as chuteiras nos pés errados.

      abraço, meu querido amigo!

      p.s. para quando novo novembro português?

      Eliminar