sábado, 24 de novembro de 2012

olhares de outono [ou o que as outras estações não veem]


Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.
Nuno Júdice, Requiem por muitos maios


fotografia de eurico portugal

são assim os olhares de outono,
azuis como o pijama às riscas
onde bordas
ponto por ponto
o rasto da noite
enquanto as demais estações
arriscam a sobrevivência
com a porta fechada
os dedos estendidos sobre a boca
e a canção que entoa acordes de loucura.

houve tempos em que preferias o verão
[disseste]
e a respiração colorida do sol
na roleta-russa dos lábios
ou nas engrenagens do coração

recordo ainda o inverno
a trajar meias de lã até aos joelhos
e a cada arrepio
o corpo projetava sombras de licor
na cal, nos lençóis, no sexo em flor

da primavera perdi o tempo
o compasso de um mundo que compunhas com o nome
e todos os cristais com que remexias o silêncio
[sabíamos lá que a rota das aves se extingue
no orvalho de cada manhã?].

nunca soube muito de ciência
porque a verdade acena-me
desde um lugar transparente
alguns centímetros abaixo da cabeça,
lugar onde a cegueira mascara a escuridão
e as palavras que ardem em candeias
explodem antes de se tornarem
perfeitas, irrecusáveis ou mesmo vivas.

e é sempre tarde depois que morremos
porque as coisas são sempre outra coisa
e a beleza de outrora é somente lágrima
escorrida em jarra sem flores
onde agora procuramos equilibrar a voz
arrancada às costas de um mapa.
como os olhares de outono, afinal:
luzes suspensas nos peitoris das janelas
a existir pelo lado de fora da noite;
os teus olhos e os meus:
transfusão de imagens
esquecidas dentro dela.

 

12 comentários:

  1. O outono e seu perfume de sono, a estação mais humana, talvez, um lugar para se descobrir a inexistência das coisas. Olhares que já me alcançam
    Meu poeta querido, um poema de doer os ossos!
    bj gigante

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    1. a inexistência das coisas a pré-existir-nos como os olhares de outono no fim de cada outra estação.

      beijo de novembro, ira querida!

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  2. Caro Eurico,
    poema de tirar o fôlego, pois sim!
    Oscar Wilde falou certa vez algo mais ou menos assim, que as pessoas procuram os sonhos, mas se esquecem de que os pesadelos também são sonhos.
    Sempre investi nos sonhos, em especial os com sabor a outono, (talvez porque seja a minha estação preferida ou tenha nascido em um), mas também porque o outono melhor traduz a dicotomia:
    o incubo, na imagem das folhas mortas a cair; e o sonho, em sua plenitude do querer, na reserva da seiva para a estação mais fria, e todas as possibilidades que abre à sequência. Uma espécie de conspiração favorável da natureza ao encaixe do querer/ter e manter-se.
    Creio que o pesadelo, experiência solitária e de solidão, tem apenas centímetros de distância se compararmos ao tanto que o desejo com propósito pode alcançar, ali mesmo... escondido na seiva, quietinho, criando-se em árvore forte, mas plena ao voo.

    “The stay is old – I know.
    But it is goes on”.

    Beijo!

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    1. cecília, minha querida amiga,
      o outono não apenas traduz a dicotomia; ele próprio se inscreve dicotomia, ou não fosse mão a embalar o rosto no hemisfério norte e brisa fugidia no hemisfério sul. como wilde bem fez notar: mesmo os sonhos desvelam a outra face: a dos pesadelos [que não não-sonhos]. não será, afinal, a morte apenas uma etapa da... vida?

      um beijinho com os matizes de outono!

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  3. ser tempo, e ser pôr-do-sol a sangrar de outono,
    sentir-se diluído, no ser, na pele, e folha caída ao sabor do vento.
    um final de tarde à sombra de chuva,
    umas escadinhas com vasos de esperança, onde me sento,
    sempre diferente, sempre igual, sempre eu...

    ...belíssimo o teu poema, eurico!
    e levo as palavras de nuno júdica comigo,
    enorme beijinho!

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  4. o sangue de outono a mascarar a solidão. sempre diferente, sempre igual, sempre sangue.

    beijinho, andy!

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  5. nunca soube muito de ciência
    porque a verdade acena-me
    desde um lugar transparente
    alguns centímetros abaixo da cabeça....

    Uau...eu diria isso se soubesse explicar assim. Tua escrita me leva a esse território (olha, eu não sabia traduzir isso)...alguns centímetros abaixo da cabeça.
    Eta poeta que já fazia tanta falta! :-)
    Beijos

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    1. é o território não de quem escreve, não de quem lê; simplesmente o território de quem sente .- o teu, o meu.

      beijos, taninha com o tal lugar transparente uns centímetros abaixo da cabeça! :)

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  6. Todo mirante tem um horizonte para alcançar!

    venho com atraso... mas não falto!

    beijo, amigo Eurico!

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    1. jô,
      mesmo que o que nos propomos alcançar não nos caiba nem no rosto, quanto mais nas mãos...

      beijo!

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  7. ah, dane-se

    depois de um outono vem um inverno ao qual se há-de seguir uma primavera, um verão

    resta saber quantos deles conseguiremos resistir e quantos inverter

    beijo

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    1. há sempre a memória dos dias que nos olha como se fôssemos o sépia do mais gasto dos velhos retratos...

      beijo, laura!

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