sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Sétimo Céu


o encontro do homem com os seus fantasmas ocorre sete vezes,
tantas quantas as vidas que lhe disseram ter.


fotografia de eurico portugal


É sempre assim quando percebemos que o gato que nos define é, afinal, farsa com que os homens enganam os homens. São sete as vidas que se anunciam e, seja porque o ocultismo dos números lhes seduz os passos, seja porque há a fatal tendência para deixarem a esperança transcender a realidade em tudo quanto fazem, a verdade é que lá se convencem de que podem morrer tantas vezes que nenhuma se fará definitiva.
Adérito perdera a memória antes do corpo mas nunca a serenidade de perceber, para lá da consciência, que cada vida é toda a vida e que não valeria a pena esperar pela seguinte sem antes consumir as anteriores. Cresceu, aprendeu com as ruas, arranjou uma profissão, uma casa, mulher e a tudo chamou vida seis vezes, mas a cada vida ganha, outra logo lhe fugia: a despedida dos pais, os desentendimentos com a filha, o resgate do jogo e outros tantos caprichos do fado roubaram-lhe todas as vidas, uma a uma, contadas escrupulosamente pelos dedos que não se esgotavam apenas numa mão.
Era, hoje, um homem velho, tendo apenas por companhia reflexos de luz indireta onde escondia as linhas do corpo e a imagem gasta no espelho. Degladiava-se consigo mesmo por não entender a contradição: se até ali viveu à bolina do que conquistara, por que razão se entregava agora ao tiquetaque arrastado do tempo? Gostava mais de pensar do que de falar, porque se convencera de que as palavras ditas o afastavam de si arremessando-o para junto de seis vidas que recuaram ao ritmo dos passos perdidos. Pensava, sim, e fazia-o de olhos fechados para não ver e por acreditar que o que se afasta das retinas nunca chega a existir. Como a sua sétima vida, afinal, a escoar-se no pavio da vela que acendia a noite naquela varanda de 5º andar. Se em cima balouçava as esperanças no fato negro de cerimónia, lá em baixo nada existia, escondido na cor amarga daquela noite de sétimo céu.
Da velhice leva que não somos o que queremos porque o desejado é sempre ancoradouro vazio de embarcações passadas que não mais regressam. Já nem sabe se alguma vez quis ou se chegou mesmo a viver, porque não consegue recordar.
Um gemido de gato, debaixo dos pés, devolveu-o ao tempo que passa pelo lado de fora do corpo agitando-lhe o coração, que agora batia ao ritmo do que esquecera (ou não lembrava). Não sentiu medo, todavia, porque os enigmas que nos habitam sempre nos compreendem. Tudo se erguia, agora, numa existência felina, numérica, quase impercetível e apenas a laje fria em que assentava as mãos lhe dava a sensação de materialidade. De novo o gemido, uma vez, e outra, mais outra, seis vezes no total, acompanhado da orquestra de latas viradas no asfalto antes do salto no silêncio. A noite entregava-se ao homem e ao seu destino.
O silêncio lavou-lhe o rosto com sete gotas de sangue.



dead combo, esse olhar que era só teu

6 comentários:

  1. Caro Eurico,
    interessantíssimo teu conto!
    Pois o li sete vezes ou mais :)

    Sintetizando, e muito, algumas impressões:
    a escolha da narrativa não recair na primeira pessoa, de certa forma, causa a impressão de uma personagem quase feita objeto por suas próprias vidas/ex-vidas, e alçada a sua sétima e derradeira, o que penso, emoldura significativamente a dramaticidade do tema, e decorrer do drama-vida(s) dessa pessoa; e ainda um primeiro parágrafo transitando numa linha tênue da prosa poética e um narrador intenso, que além de contar, também verte palavras opinativas (ainda que sutis e em sub texto), deixam claro aqui, em minha humilde opinião, se tratar de um conto de vanguarda em sua forma.
    Fiquei sinceramente entusiasmada com essa forma e esse caminho escolhido, intencional ou intuitivo.

    Ainda penso, sobre este assunto, que depende de nossas escolhas, do felino que nos permitimos ser em nossas vidas, (o quanto arriscamos, atacamos ou defendemos), elas podem chegar a sete, ou apenas duas, quem sabe oito ou mais?...

    Inteligente! Sub texto, estranheza, está tudo aqui, num coquetel de linhas que, com certeza, lerei mais vezes. (também na espera de mais textos!) Parabéns!

    Beijos imensos!

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  2. O texto caminha nas alturas, sobre cabo de aço, essa é minha sensação da leitura repetida e repetida. Toca-me a pele a veste dramática, quando tudo que percebo nesse estado de desassossego (Vida) é que, toda trajetória humana faz-se na obscuridade, o homem não pensa na morte, o homem não pensa na vida, o homem não pensa, apenas, se convence das ilusões desejadas.
    Adorei o fim do medo
    bj grande

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  3. Você arrepia tanto na prosa quanto na poesia!

    Outro beijo, português raro*

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  4. Um ulhar felino sobre a prosa, tão apurada e singular quanto a poesia.
    Beijinho,

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  5. ...e o silêncio lavou-lhe o rosto, abriu-lhe a alma.

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  6. um destes dois, na foto, terei sido eu.
    saudades, euriquíssimo.

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